Quénia · 3 maio 2023 · 10 Min
A Fundação Aga Khan (AKF) tem uma longa história de defesa da igualdade de género e da garantia da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres em todas as suas áreas de trabalho. Enquanto Diretora Global da AKF para a Igualdade de Género, Gulnora Mukhamadieva dedica-se a promover este trabalho. Falámos com Gulnora para saber mais sobre o seu trabalho e porque é que a igualdade de género é tão essencial para a abordagem da AKF ao desenvolvimento internacional.
Gulnora, pode começar por falar-nos do seu cargo, do que está a tentar alcançar e dos objetivos gerais da AKF em matéria de igualdade de género?
A missão da AKF está dedicada a melhorar a vida das populações mais marginalizadas do mundo, independentemente da sua fé, género ou etnia. Temos colocado a igualdade de género no centro de todo o nosso trabalho programático. Para que as comunidades com as quais trabalhamos prosperem, temos de desbloquear todo o potencial tanto das mulheres como dos homens. Precisamos especialmente de investir nas raparigas para garantir que não são colocados nenhuns obstáculos no seu caminho, para que possam aprender, desenvolver-se e contribuírem em todos os aspetos da vida.
Quando falo de igualdade de género, cito muitas vezes Sua Alteza o Aga Khan: "A procura da justiça e da segurança, a luta pela igualdade de oportunidades, a busca pela tolerância, harmonia e dignidade humana - estes são imperativos morais que devemos procurar alcançar e sobre os quais devemos pensar todos os dias."
O meu cargo – para o qual entrei em 2019 – consiste principalmente em ajudar a organização a cumprir esta missão e a pôr em prática o nosso compromisso. No dia-a-dia, procuro promover a agenda da igualdade de género e da capacitação das mulheres, trabalhando em estreita colaboração com as unidades de cada país e com parceiros para garantir que todos os esforços em torno da integração da igualdade de género nos nossos programas são levados a cabo a nível local. Também ajudo colegas, gestores e responsáveis por questões de género no desenvolvimento de estratégias, com muitas das nossas equipas atualmente a iniciarem o processo de desenvolvimento de estratégias de igualdade de género específicas para cada país. Esta é uma área de trabalho enorme porque cada país tem diferentes contextos, necessidades e prioridades no que à igualdade de género diz respeito. Em todas as geografias da AKF, existem enormes necessidades em matéria de igualdade de género.
Como definiria a igualdade de género e qual o papel da AKF na sua concretização?
Sem ser demasiado académica em relação a isso, e como vem sublinhado na nossa Política de Igualdade de Género, damos especial destaque ao investimento no potencial humano, na expansão da igualdade de oportunidades e na melhoria dos padrões de vida em geral. Para nós, a igualdade de género está associada à valorização das diferentes necessidades, comportamentos e ambições de todas as pessoas – mulheres e homens, raparigas e rapazes. Isto não significa que todos têm de ser iguais, mas sim que os direitos, responsabilidades e oportunidades de cada um não devem depender do género.
Ao trabalharmos através de estruturas baseadas nas comunidades, garantimos que as opiniões das mulheres são tidas em conta e que estas possuem recursos, conhecimentos e competências suficientes para se envolverem nos processos de planeamento e tomada de decisão. Passámos anos a ganhar a confiança das comunidades e acredito que isto é algo que distingue bastante a AKF e a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN). A nossa presença de longo prazo e as equipas geridas a nível local fazem com que tenhamos uma compreensão profunda dos contextos locais e das principais barreiras estruturais que impedem a promoção da igualdade de género nas comunidades.
As pessoas associam muitas vezes a igualdade de género com a capacitação e os direitos das mulheres, e embora isso seja uma grande parte do nosso trabalho, a questão da igualdade de género é mais complexa do que isso. Como é que a promoção da igualdade de género pode fazer a diferença para toda a gente?
Quando falo com os meus colegas, costumo dizer que a igualdade de género diz respeito a todos – estamos nisto juntos e não iremos evoluir se não começarmos a mudar a ideia de que se trata apenas de uma questão feminina. Na AKF, garantimos que os nossos parceiros e as comunidades com as quais trabalhamos compreendem que a desigualdade de género prejudica toda a gente. Uma boa forma de explicá-lo é através de uma perspetiva económica. Se as mulheres não tiverem um acesso igual ao emprego e às oportunidades de empreendedorismo, o capital humano da sociedade fica subutilizado, o que leva a uma produtividade limitada, afetando negativamente todos os membros dessa sociedade. Portanto, para além de uma questão de direitos, a igualdade de género é também inteligente do ponto de vista económico.
També digo muitas vezes que, de certa forma, a desigualdade – embora de uma forma mais subtil – prejudica os homens, devido ao enorme peso de ter de ser o principal sustento da família. Em sociedades com uma profunda desigualdade de género, os homens normalmente não têm tempo suficiente para se envolverem na educação dos seus filhos e para criarem vínculos emocionais com a sua família. Deste modo, a desigualdade de género não só exclui as mulheres da economia de mercado, como também retira os homens da economia dos afetos.
Uma das áreas à qual temos de prestar mais atenção é a compreensão da masculinidade e dos desafios que os homens enfrentam – às vezes é fácil concentrarmo-nos demasiado apenas nas mulheres. Recentemente, lançámos um novo projeto com a Escola para a Promoção da Igualdade de Género da Universidade da Ásia Central (UCA), que reúne especialistas, investigadores, profissionais e jornalistas relacionados com a questão de género. Em conjunto, vamos analisar a masculinidade na Ásia Central para entender melhor os fatores económicos e psicológicos que afetam o comportamento dos homens. Esta é outra parte da equação para o aumento da igualdade de género.
Acredita que o sector do desenvolvimento internacional está a fazer o suficiente para promover a igualdade de género?
Desde a conferência de Pequim em 1995 acerca da igualdade de género que esse é o assunto de que toda a gente fala. Mas se olharmos para o progresso alcançado, creio que tem sido bastante lento. A nível global, têm-se realizado importantes conferências e têm-se feito promessas e compromissos, mas, ao mesmo tempo, a implementação dos principais acordos relativos à igualdade de género tem sido lenta e continuamos a enfrentar muita resistência ao nível das bases.
Um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU concentra-se na igualdade de género, mas é pouco provável que este ODS em particular venha a ser alcançado até 2030. Existem muitas questões que ainda precisamos de resolver e a pandemia da COVID revelou até que ponto muitos países e sociedades não estavam preparados para uma crise assim. As mulheres tiveram falta de acesso a informações precisas, a dispositivos móveis, a alguns serviços básicos e, como resultado, temos visto que muitos países estão agora a retroceder ao nível dos seus avanços na igualdade de género. Em muitos dos países onde trabalhamos, assistimos a um aumento nos casamentos precoces, ao abandono escolar por parte das raparigas, problemas de ansiedade e saúde mental, e a um aumento acentuado da violência baseada no género.
Isto mostra que, embora a igualdade de género esteja no centro da agenda de desenvolvimento, em momentos de crise, as desigualdades voltam a surgir; nos locais onde existe progresso este nem sempre é linear. O Afeganistão é um exemplo que mostra como um progresso considerável pode ser revertido em pouco tempo. No entanto, uma das nossas características particulares é que trabalhamos com as comunidades no longo prazo e acreditamos que os contratempos podem ser superados.
A desigualdade de género existe em todos os lugares, mas cada lugar enfrenta diferentes níveis e tipos de desigualdade. Nuns é mais implícito, noutros é mais explícito – pode haver fatores culturais ou religiosos em jogo. Como podemos implementar programas que sejam sensíveis à questão de género, de uma forma relevante e respeitosa dos contextos locais?
Em primeiro lugar, temos de eliminar a ideia errada de que a igualdade de género é um conceito "ocidental". Por exemplo, o Islão dá grande importância à proteção das mulheres e ao papel das mulheres enquanto mães. O Sultão Mahomed Shah Aga Khan III (avô e antecessor de Sua Alteza o Aga Khan) foi um formidável defensor da educação das raparigas e dos direitos das mulheres, e a AKDN começou em 1905 com iniciativas de educação de raparigas em Zanzibar, no Paquistão e na Índia.
Vemos a igualdade de género como um direito humano fundamental – está incorporado na nossa visão e, embora nem todos concordem, tem eco em valores fortemente enraizados nas comunidades que servimos. Quando as comunidades com as quais trabalhamos olham para a igualdade de género como um conceito externo e imposto é quando existe uma maior resistência. É importante que o enquadremos enquanto um direito humano universal e, como mencionei anteriormente, que se compatibilize com valores locais que apoiam a igualdade de género e os benefícios económicos que traz para as comunidades. Onde quer que uma pessoa vá, os pais querem sempre o melhor futuro para os seus filhos e filhas, o que mostra que a igualdade é valorizada em todo o mundo.
Temos sempre de estar atentos ao que é culturalmente aceitável e, mais importante, temos de ser pacientes. Vejo que muitas organizações estão muito impacientes. É importante lembrar que a mudança de perspetiva relativamente à questão de género requer uma enorme mudança social, e isso leva tempo. Eu venho do Tajiquistão, onde, entre 1991 e 1995, tivemos uma guerra civil que mudou substancialmente as coisas. A guerra, em conjunto com um enorme fluxo migratório por parte dos homens para a Rússia, levou a que muitas mulheres (muitas vezes viúvas) tivessem de assumir os papéis atribuídos aos homens enquanto protetoras, decisoras e sustentadoras. Estes tipos de crises levam as sociedades a mudar o seu entendimento – isso requer muita mudança.
Na AKF, procuramos dar prioridade à igualdade de género em todos os nossos programas, da agricultura à saúde e à educação, entre outros. Como é que o fazemos?
Antes de começarmos a trabalhar com as comunidades e a conversar com elas sobre as formas de promovermos a igualdade de género, precisamos de olhar para a nossa própria organização e ter certeza de que nós próprios estamos a praticar a igualdade de género. A integração da perspetiva de igualdade de género inclui o compromisso de integrar a igualdade de género na cultura e nas políticas organizacionais e, aqui na AKF, fazemo-lo através do Indicador de Desempenho de Género da AKF. Com este indicador, a AKF realiza uma avaliação anual para determinar quais as barreiras institucionais que inibem a igualdade de género e a capacitação das mulheres em toda a organização e identificar formas de eliminar essas barreiras.
Para trabalhar no sentido da igualdade de género nos nossos programas, a AKF tem adotado uma abordagem de integração de género em todas as suas políticas, estratégias, operações e áreas de programa. De forma simples, quando arrancamos com uma nova iniciativa, fazemos as seguintes perguntas: (i) de que modo é que as mulheres e os homens são afetados de forma diferente pela questão que estamos a tentar abordar? (ii) ouvimos a opinião das mulheres na criação dos nossos programas e tivemos em conta as suas necessidades e prioridades? (iii) como podemos assegurar que o programa beneficia mulheres e homens de forma equitativa? (iv) o programa é capaz de contribuir para uma mudança ao nível das desigualdades de género? Para tal, dispomos de ferramentas como o Indicador de Igualdade de Género, que utilizamos para avaliar em que medida os programas integraram as questões de género na sua conceção.
Enquanto Diretora para a Questão de Género, é minha responsabilidade trabalhar com colegas para perceber como é que estes podem aumentar os resultados do Indicador de Igualdade de Género nos seus programas, para garantir que não defraudam as expectativas tanto dos mulheres como dos homens envolvidos por não compreenderem de forma adequada as suas necessidades. Ao mesmo tempo, temos de ser realistas – trabalhamos em contextos muito desafiantes e frágeis, pelo que parte do meu trabalho passa também por apoiar cuidadosamente as equipas neste processo.
Que iniciativas de género da AKF lhe despertam mais entusiasmo para o futuro?
Estou muito entusiasmada com o nosso foco na sociedade civil, especialmente no envolvimento e participação das mulheres. Trabalhamos bastante através de organizações da sociedade civil e, embora historicamente tenhamos vindo a registar o número de mulheres que participam em eventos e reuniões, estamos agora a procurar aprofundar mais esses registos para perceber se as opiniões das mulheres estão realmente a ser ouvidas. Elas são membros ativos destas reuniões, e se não forem, como podemos assegurar que o são?
Em 2022, em conjunto com a Universidade Aga Khan, lançámos a Academia de Liderança Feminina – um curso online de ensino misto ao longo de seis meses destinado especificamente a representantes de organizações da sociedade civil, do sector da saúde e da educação de cinco países de África (Quénia, Uganda, Tanzânia, Madagáscar e Moçambique) e de quatro países da Ásia (Afeganistão, Quirguistão, Paquistão e Tajiquistão). Embora existam cursos semelhantes disponíveis, a maioria é em inglês. Inicialmente, o nosso curso será traduzido para Urdu, Português e Russo.
Também temos um novo e empolgante programa de liderança para raparigas em design, chamado GEM GIRLS – um movimento ambiental de raparigas que visa criar atividades de subsistência inclusivas e resilientes para raparigas. Através dos programas e plataformas globais de educação da AKF já existentes, as raparigas têm acesso a serviços de aconselhamento para que se possam envolver mais nas questões ambientais que afetam as suas comunidades e possam aumentar a consciencialização à volta da agenda para a resiliência climática.
O que a motiva enquanto pessoa a fazer este trabalho?
Como já disse, eu sou do Tajiquistão. Não venho da capital, Dushanbe, venho de uma pequena cidade na fronteira com o Uzbequistão, e por causa da guerra civil, os meus pais não me queriam enviar para Dushanbe para o ensino superior, porque simplesmente não era seguro. Mas eu convenci os meus pais a deixarem-me ir estudar para a universidade. De lá para cá, tenho sido sempre um grande defensor da educação das raparigas. Acredito verdadeiramente que se capacitarmos as raparigas – especialmente as adolescentes – a desenvolverem as suas competências para que possam estudar e formarem-se, elas poderão assumir o controlo das suas vidas no futuro.
Hoje em dia, sinto-me mais motivada quando viajo para os países onde a AKF trabalha e converso com as mulheres e raparigas que servimos – é realmente inspirador. Nunca esquecerei a minha visita à Índia em Agosto de 2019. Lá, temos um projeto de apoio às mulheres na criação de cabras. Falei com uma das mulheres e ela disse-me: “Estou tão cansada destas cabras, quero trabalhar num escritório!”. Para mim, isto é sinónimo de uma verdadeira capacitação, porque apesar de estar grata pelas oportunidades que teve, ela quer mais – um papel com um impacto maior em si mesma e nos outros. E é nesse sentido que todos temos de trabalhar.