Repuública do Quiguistão · 2 junho 2020 · 7 Min
Onno Ruhl é o primeiro Diretor-Geral da Agência Aga Khan para o Habitat (AKAH), criada em 2016 para fazer face à crescente ameaça representada por desastres naturais e pelas alterações climáticas. A agência trabalha para garantir que as comunidades se encontram o mais seguras possível dos efeitos dos desastres naturais, que os residentes que vivem em áreas de alto risco conseguem lidar ao nível da preparação e resposta, e que têm acesso a serviços sociais e financeiros que lhes ofereçam mais oportunidades e uma melhor qualidade de vida.
Fale-nos do trabalho da AKAH. Como nasceu a agência?
A AKAH é uma agência nova, mas não é nova no sentido em que é construída sobre o legado de várias organizações que existiram dentro da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN). Sua Alteza o Aga Khan percebeu que a intensidade, em matéria de frequência mas também de gravidade, dos desastres naturais em todo o mundo vinha piorando bastante. Deste ponto de vista, seria improvável que as soluções que funcionaram para manter a comunidade em segurança ao longo dos últimos 20 anos fossem suficientemente boas para manter a comunidade em segurança por mais 20 anos, quanto mais por mais 50 anos.
Sua Alteza disse que o trabalho não deveria continuar a debruçar-se sobre a compreensão do habitat ao nível de “aquilo que é”, mas antes ao nível de “aquilo que deveria ser”. E o modo como agora concebemos isso dentro da nossa própria estratégia passa por mudar o nosso trabalho de um planeamento que crie segurança para um planeamento que crie oportunidades, mesmo perante níveis de risco cada vez maiores.
Que papel têm as comunidades no “planeamento que crie oportunidades”?
A mobilização das comunidades começou como um complemento ao mapeamento dos riscos físicos [de desastres naturais] em cada uma das comunidades em que trabalhamos. Isto significa que enviamos geólogos e mobilizadores da comunidade - porque a comunidade tem de nos dar permissão para o fazermos - a uma aldeia para mapear os recursos físicos. Por isso, nós temos, enquanto capital intelectual na nossa agência, as avaliações de vulnerabilidade e risco de 2207 comunidades da Índia, Paquistão, Tajiquistão e Afeganistão.
A combinação das competências de avaliação e geologia que temos com a capacidade de trabalhar com as bases de dados do GIS [Sistema de Informações Geográficas] é o mesmo conjunto de competências que seria necessário usar para o planeamento. Portanto, a lógica passa por desenvolver as competências existentes e criar uma metodologia que nos permita trabalhar com estas comunidades ao nível do planeamento.
Mas o planeamento não tem valor se começarmos a criar um plano para uma comunidade com a qual não tenhamos uma relação de compromisso. A comunidade irá ignorar aquilo que fizermos ou mesmo revelar-se hostil, porque quem somos nós para fazer um plano para a comunidade? Assim, são necessários dois aspetos muito importantes ao nível do compromisso. Em primeiro lugar com a própria comunidade, e depois, muito importante, com o governo responsável por aquele lugar geográfico em particular.
Porque considera esta uma parte importante do mundo para trabalharem e ponderarem estas questões relacionadas com o clima e o habitat?
É sabido que existem duas calotas de gelo que estão a derreter no mundo: o Polo Norte e o Polo Sul. O que muitas pessoas não percebem é que a terceira maior concentração de gelo do mundo, por vezes denominada de “Terceiro Polo”, é a cordilheira dos Himalaias. E tem uma geografia muito diferente. Lá, não existem ursos polares. Existem pessoas a viver lá, e estão tão ameaçadas como os ursos polares. E quando vamos a jusante, vemos que esse “Terceiro Polo” é na verdade a bacia hidrográfica que alimenta 1,5 mil milhões de pessoas na Ásia, estendendo-se do Afeganistão ao Vietname, e até à China, Ásia Central, Índia, Paquistão e Bangladesh. Portanto, existem razões bastante convincentes para trabalhar nesta área, porque é uma das linhas de frente mais importantes da adaptação às alterações climáticas.
As pessoas gostam de falar acerca da mitigação das alterações climáticas. Mas costumam esquecer-se de que existem hoje no mundo cerca de 200 milhões de pessoas que já vivem em risco no seu habitat devido a alterações climáticas que já aconteceram. Por isso, existem razões bastante convincentes para trabalhar nestas áreas geográficas. Não podemos simplesmente deslocar 200 milhões de pessoas, isso nunca seria exequível. Temos de trabalhar com estas pessoas para que se adaptem ao local onde vivem.
A segunda razão pela qual trabalhamos nestes lugares prende-se com o facto de estas serem áreas com as quais a AKDN tem estado historicamente envolvida há muito tempo. E é por isso que estamos enraizados nestas comunidades de uma forma que nos permite fazer coisas que, julgo poder dizê-lo com alguma confiança, outras redes de desenvolvimento não seriam capazes de fazer.
As montanhas são frequentemente vistas como marginais. E é habitual pensar que permitir aos habitantes das montanhas a possibilidade de se desenvolverem é uma causa perdida, devido ao facto de ser um ambiente tão adverso. Na AKDN, nós não aceitamos isso. A Suíça, durante mais de 200 anos, conseguiu transformar as montanhas numa incrível vantagem competitiva e tornar-se um dos países mais ricos do mundo. Outras comunidades de montanha, a longo prazo, devem poder desenvolver-se, manter o seu património e beneficiar das montanhas, e não despovoar estes belos territórios.
Crianças a caminharem para casa em Barsem, Tajiquistão. Um lago nas imediações causou uma torrente de lama em 2015, causada pelas altas temperaturas e por um rápido degelo da neve e glaciares. O lago submergiu a estrada, as linhas de energia, quintas e casas. A AKAH ajudou a comunidade a recuperar com novas habitações, sistemas de água e outras infraestruturas.
AKDN / Christopher Wilton-Steer
Quais são as outras principais áreas de atuação da agência?
Penso que é importante falar sobre a principal atividade da AKAH, que é o abastecimento de água e saneamento.
Ao longo dos últimos 18 anos, a AKDN levou água canalizada às casas de meio milhão de famílias. Passados dez anos, fomos convidados a avaliar aquilo que tinha sido construído. Noventa e seis por cento dos sistemas ainda estavam a funcionar de acordo com os padrões da Organização Mundial da Saúde.
A razão pela qual muitos deles continuavam a funcionar é a mesma razão pela qual sempre funcionaram: a engenharia é muito boa e foi dada muita atenção às fontes de águas para obtermos a qualidade de que precisamos. Mas o motivo pelo qual continuam a funcionar é porque a comunidade ajudou a construí-los e porque demos formação a membros da comunidade para realizarem uma manutenção regular. Não consertar depois de se estragar, mas sim fazer uma manutenção regular.
A primeira vez que vi um destes sistemas, foi-me dado um copo de água e eu fingi que dava um golo na água mas fechei a boca. O Presidente da AKAH Paquistão viu-me a fazer isso e disse: “Não, não, pode beber”. Eu disse: “Sou estrangeiro, não estou habituado a esta água, vai-me fazer mal.” Ele disse: “Se pode beber água Evian, também pode beber esta.” E eu bebi. Era perfeitamente salutar.
E isto é importante porque eu considero que aquilo que fazemos nos países em desenvolvimento deve ser tão bom ou melhor em matéria de qualidade que aquilo que fazemos em qualquer lugar do mundo. Eles precisam de qualidade tanto como qualquer outra pessoa.
De que modo é que algumas destas questões são diferentes para as mulheres e raparigas?
Um planeamento que crie oportunidades significa que deixamos de pensar apenas na sobrevivência das comunidades, mas também no modo como poderão, com o tempo, vir a sair da pobreza. Se fizermos isto, é muito importante perceber que esta é uma manobra intergeracional.
Hoje em dia, na maioria das sociedades em que trabalhamos, a imagem tradicional seria aquela em que os filhos homens da família seguiriam as pegadas do pai. Um exemplo simples, se eles são agricultores, os filhos provavelmente serão agricultores. Depois apercebemo-nos subitamente de que, se apenas uma das raparigas se puder tornar enfermeira, o que é possível na AKDN, toda a família terá um futuro completamente diferente.
Então este é um exemplo de uma família. Se multiplicarmos isto, não nos estaremos a concentrar apenas nos jovens, mas nas jovens do sexo feminino, que é onde reside o cerne da questão.
Digo isto sem qualquer menosprezo pelos rapazes. Eles podem e devem tirar o melhor partido das suas vidas também. Mas se nos concentrarmos verdadeiramente em capacitar as raparigas, acredito que o desenvolvimento pode ser muito rápido.
O que o inspira a fazer este trabalho?
Eu gosto de contar a história de uma aldeia que foi atingida pelo transbordamento de um lago glaciar. Houve muito trabalho na construção de um sistema de alerta precoce, monitorização de glaciares através de drones, todo tipo de coisas sofisticadas [para identificar o risco].
Mas, no final, foram dois rapazes com uma bandeira, sentados na encosta de uma colina a olharem para o glaciar, e dois rapazes do outro lado, a observarem o movimento da bandeira que avisava que o risco se tinha materializada e estava na altura de evacuar a aldeia. A isto se chama mobilização da comunidade. Ao combinar a mobilização da comunidade com a ciência, podemos resumir a questão à confiança depositada em quatro rapazes que ficaram acordados toda a noite e foram capazes de salvar, neste caso, 250 pessoas cujas casas ficaram inundadas.
Passei toda a minha carreira na área do desenvolvimento. E quanto mais eu viajava e mais conversava com as pessoas sobre o desenvolvimento e tentava entendê-lo, mais eu percebia que as respostas não residem nas contribuições de pessoas de fora, mas sim naquilo que a própria comunidade pode fazer.
Onno Ruhl é o Diretor-Geral da Agência Aga Khan para o Habitat (AKAH). O Sr. Ruhl ocupou cargos no Banco Mundial, como diretor nacional para a Nigéria e, mais recentemente, como diretor nacional para a Índia.