Não disponível · 5 abril 2024 · 1 Min
OPINIÃO
Por Gijs Walraven, Diretor para a Saúde da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento
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O objetivo global de uma cobertura universal de saúde, um dos temas do Dia Mundial da Saúde deste ano, está longe de ser alcançado, por culpa da desigualdade entre comunidades mais e menos favorecidas.
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A melhor forma de alcançar o objetivo global de um acesso universal a cuidados de saúde passa por centrar os cuidados primários no modelo geral de prestação de serviços.
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Os prestadores de cuidados de saúde privados e sem fins lucrativos alinhados com uma estratégia partilhada podem facilitar o acesso, garantindo que os cuidados de saúde chegue a um maior número de pessoas.
Este Dia Mundial da Saúde – cujo tema é "A minha saúde, o meu direito" – concentra-se na ambição global de observar um acesso universal a serviços de saúde necessários sem dificuldades financeiras, uma meta que está longe de estar alcançada.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2021, cerca de 4,5 mil milhões de pessoas, mais de metade da população mundial, não estavam totalmente cobertas por serviços essenciais de saúde. Com os governos a tentarem equilibrar as despesas de saúde com outras prioridades, como a educação, a segurança social e a defesa nacional, revela-se necessário encontrar soluções alternativas.
Os prestadores de cuidados de saúde privados e sem fins lucrativos podem desempenhar um papel fundamental, mas apenas num ambiente propício, algo que tem sido difícil de desenvolver.
Cobertura universal de saúde inatingível
Os dados recentes da OMS sugerem que as melhorias na cobertura da prestação de serviços de saúde estão estagnadas desde 2015. O mundo vai pelo "caminho errado” com vista a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU de proporcionar uma cobertura universal de saúde até 2030.
No cerne da questão está a desigualdade. Os serviços de saúde continuam a estar mais acessíveis em países mais ricos e desenvolvidos e em comunidades urbanas mais ricas e educadas em países com baixos e médios rendimentos. As mulheres e as populações indígenas ou migrantes enfrentam barreiras particulares.
À medida que os sistemas de saúde vão tendo de lidar com estas questões, juntamente com o aumento dos tempos de espera pós-pandemia e as restrições de financiamento impulsionadas por uma geopolítica e macroeconomia incertas, a cobertura universal de saúde vai-se tornando cada vez mais inatingível. A OMS sugere que a melhor forma de continuar na direção certa é concentrar os cuidados primários no contexto do sistema global de saúde, oferecendo uma gama completa de serviços de saúde o mais próximo possível das populações.
Neste modelo, a prevenção é tão importante quanto o tratamento – a educação para a saúde começa em casa, com níveis progressivos de cuidados de saúde através de clínicas locais, seguidos por hospitais regionais e nacionais. Contudo, esta mudança pode ser complicada de pôr em prática em muitos países. Requer uma abordagem cuidadosamente construída e um investimento racional ao nível dos recursos nos diferentes níveis de cuidados de saúde. Então como é que podemos consegui-lo?
Sector privado da saúde como um recurso valioso
Uma das soluções passa por integrar as instituições privadas nos sistemas de saúde – uma prática que já existe há séculos. Desde a antiguidade tardia que existem comunidades caritativas, filantrópicas e religiosas a prestar cuidados de saúde. A Academia de Gondishapur do século VI na Pérsia, os hospitais monásticos medievais dos séculos VI e VII em Itália e Espanha, o Hôtel-Dieu do século IX em Paris e o Hospital de São Bartolomeu do século XII em Londres são alguns dos exemplos.
Recentemente, muitas entidades privadas em países com baixos e médios rendimentos têm sido substituídos por sistemas públicos estatais que procuram prestar cuidados de saúde acessíveis e de qualidade. Este sistema tem dado origem a um debate acerca da relevância da oferta privada, pois há quem argumente que os cuidados de saúde devem ser uma responsabilidade dos governos.
No entanto, o sector privado da saúde não desapareceu, em parte porque é capaz de oferecer uma gama mais alargada de serviços do que os sistemas de saúde financiados pelo governo. Na verdade, cerca de um terço da despesa em saúde a nível mundial está no sector privado, um número geralmente muito mais elevado em países mais pobres, de acordo com o Banco Mundial.
O foco central do debate não deve ser se o sector privado continua a ser relevante, mas como é que pode ser um melhor complemento às metas nacionais em matéria de saúde. Nem todos os prestadores privados de cuidados de saúde procuram gerar lucros para os seus proprietários ou acionistas. Em sistemas de saúde privados e sem fins lucrativos como o nosso, que gerem quase 900 centros de saúde e 30 hospitais na Ásia, África e Médio Oriente, as taxas são reinvestidas no hospital ou no sistema de saúde para melhorar a resposta às necessidades das comunidades locais.
Para complementar de forma adequada os serviços públicos, estes sistemas têm de colaborar com o governo. Da mesma forma, o Estado deve providenciar as políticas, incentivos e padrões que permitam o investimento por parte do sector privado.
Existem muitos exemplos no mundo real que demonstram o sucesso desta abordagem. O governo do Camboja tem sido significativamente bem-sucedido desde 1998 na contratação de cuidados de saúde a prestadores privados. No estado de São Paulo, no Brasil, também existem sinais que sugerem uma série de resultados positivos decorrentes da contratação de organizações sem fins lucrativos para prestar serviços primários de saúde.
Uma das parceiras da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, La Chaîne de l'Espoir, tem vindo a disponibilizar conhecimentos médico-cirúrgicos de alto nível em mais de 30 países desde 1994, salvando milhares de vidas e transmitindo competências essenciais às equipas médicas locais. Na Síria e no Afeganistão, temos apoiado sistemas públicos de saúde em dificuldade durante crises recentes, garantindo a prestação de serviços públicos onde estes não existem e reforçando a capacidade de lidar com vítimas em massa e surtos de doenças.
Incluir o sector privado
O sector privado da saúde é muito variado e a combinação certa entre prestadores privados e públicos será sempre algo específico de cada país. No entanto, dado que os países ambicionam uma cobertura universal de saúde, todos os prestadores devem estar alinhados com uma estratégia partilhada. Os governos podem ajudar a atingir este alinhamento e, ao mesmo tempo, criar condições iguais para todos. Algumas das ferramentas incluem o licenciamento, planeamento conjunto com todas os intervenientes, avaliação de desempenho, monitorização de processos, sistemas de reclamações e modelos de seguros sociais de saúde.
A administração governamental destas ferramentas pode permitir uma participação justa por parte dos prestadores públicos e privados. No Egipto, foi criado um fundo de saúde familiar para contratar prestadores públicos e privados e adquirir serviços para utentes com e sem seguro. As unidades de saúde devem cumprir os critérios de certificação e ter os seus cuidados com os pacientes avaliados pelo Ministério da Saúde. As unidades com baixas avaliações ficarão impedidas de receber a certificação.
As parcerias público-privadas (PPP) são outra ferramenta poderosa para garantir esse alinhamento. Permitem que os governos contratem prestadores privados para oferecer serviços específicos com resultados bem definidos e em conformidade com os regulamentos. Temos participado em PPP para criar e melhorar unidades de saúde no Afeganistão, Paquistão e Tanzânia, tendo um impacto positivo em todo o sector da saúde.
Num hospital provincial afegão, os internamentos aumentaram de 1900 em 2004 para mais de 12 000 em 2023, e os atendimentos em ambulatório de 43 000 para 244 000 no mesmo período, com bons resultados para os pacientes. Este tornou-se o primeiro hospital público do Afeganistão a obter a certificação SafeCare com base em padrões internacionais de qualidade.
Resultados, não ideologia
Sua Alteza o Aga Khan
Com o mundo a seguir pelo caminho errado com vista a atingir uma cobertura universal de saúde até 2030, os governos não podem continuar a agir da mesma maneira. Os prestadores privados, especialmente os do sector dos serviços de alta qualidade e sem fins lucrativos, oferecem uma tábua de salvação aos países que procuram potenciar recursos escassos. A criação de um ambiente propício para estes prestadores pode permitir melhores resultados de saúde para todos.
Os decisores políticos não devem ser limitados por objeções ideológicas à prestação de serviços por entidades não-estatais, porque a alternativa é muitas vezes não haver qualquer prestação de serviços.
SOBRE OS AUTORES
O Dr. Gijs Walraven é o Diretor para a Saúde da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN) e o Diretor-Geral das empresas dos Serviços Aga Khan para a Saúde (AKHS) localizadas na Ásia Meridional e Central, na África Oriental e no Médio Oriente. É também Professor Honorário em Ciências da Saúde Comunitária na Universidade Aga Khan. Antes de se juntar à AKDN em 2003, o Dr. Walraven passou 15 anos a trabalhar em África na prestação, gestão e investigação em serviços de saúde, com ênfase nos sistemas distritais de saúde.
Este artigo foi publicado no Dia Mundial da Saúde de 2024 em coordenação com a Agenda do Fórum Económico Mundial.