Não disponível · 10 outubro 2024 · 5 Min
Os danos que a demência causa na qualidade de vida das pessoas é óbvio: do sofrimento pessoal à sobrecarga das famílias e à perda de rendimentos fundamentais. A nível nacional, uma explosão de casos de demência em países de rendimentos baixos poderia prejudicar o desenvolvimento, com uma redução na produtividade, uma maior pressão sobre os recursos de saúde e um forte impacto social.
Zul Merali, fundador do Instituto do Cérebro e da Mente (ICM) da Universidade Aga Khan
Mas em grande parte do Sul Global a média etária da população é bastante baixa. No Quénia, por exemplo, metade da população tem menos de 20 anos. E desde a imunoterapia ao trabalho com células estaminais, há muita investigação em curso sobre como prevenir e curar as doenças que causam demência. Em 2050, quando 60% da população mundial com mais de 60 anos estiver em África, continuará a demência a ser um problema de desenvolvimento?
Sem dúvida, de acordo com o Instituto do Cérebro e da Mente (ICM) da Universidade Aga Khan.
O professor Zul Merali, fundador do ICM, diz que 98% dos dados relativos à demência têm origem na América do Norte e na Europa. Mas as causas, o diagnóstico e as consequências da demência podem variar entre regiões, particularmente no Sul Global.
Por exemplo, existem cientistas no Ocidente a desenvolver tratamentos baseados no gene APOE4, conhecido por ser um fator de risco para a doença de Alzheimer. Mas em África, com um património genético mais diversificado, este gene não tem uma ligação tão forte com a demência. Para poderem serem úteis no Sul Global, os tratamentos devem ter em conta a variabilidade tanto da genética como do ambiente humano.
Nos EUA, as pessoas são orientadas para reduzir o risco através do exercício. Mas nos países onde a AKDN trabalha, o trabalho físico é a norma. Diabetes e pressão alta são mais prováveis, e existem outros riscos como a negligência infantil, traumas ou privações alimentares.
As melhores ferramentas atuais de diagnóstico não têm a mesma utilidade em todos os lugares. Verificar se alguém consegue desenhar um relógio é irrelevante no Quénia rural, onde as pessoas mais velhas podem nunca ter visto um relógio analógico – ou frequentado a escola e aprendido a usar papel e lápis.
As campanhas públicas de sensibilização no Ocidente visam uma cultura muito diferente. No Sul Global, as consequências para as famílias de pessoas com demência são ainda maiores. Sem lares de terceira idade especializados, a responsabilidade dos cuidados recai tipicamente sobre os familiares do sexo feminino. As cuidadoras, já de si com rendimentos reduzidos, podem precisar de comprar equipamentos como cadeira de rodas ou cama com barras laterais altas. Mas à medida que a doença vai progredindo, torna-se impossível para as cuidadoras continuarem a trabalhar. Perante uma situação de maior pobreza e estigma, a família também pode ser ostracizada pela comunidade, que suspeita que a pessoa afetada possa estar “possuída por espíritos malignos”. O ICM está a trabalhar com vários grupos comunitários para disponibilizar informações públicas relevantes.
A pequena equipa do ICM, atualmente no seu quarto ano de investigação, inovação e formação em saúde do cérebro, pretende desenvolver ferramentas de combate à demência que sejam relevantes para o contexto africano. A equipa tem criado testes de diagnóstico adaptados à cultura dos pacientes e está a trabalhar em análises ao sangue, semelhantes aos testes de glicose para a diabetes, que possam sinalizar uma paciente em risco.
Dado que os tratamentos atuais ainda não são adequados, apresentando efeitos colaterais como hemorragias cerebrais e valores inacessíveis para a maioria dos africanos, o ICM está a concentrar-se na prevenção de casos futuros enquanto a população ainda é jovem. Assim como a redução do tabagismo reduz o risco de doenças cardiovasculares, também alguns riscos de demência são evitáveis – e gerir esses riscos pode prevenir ou retardar quase metade dos casos de demência.
Num dos seus estudos, o ICM está a explorar a resiliência do cérebro. Quais os fatores que levam certas pessoas a lidar melhor do que outras com notícias stressantes, como um diagnóstico de cancro?
Noutro estudo, o ICM e a Davos Alzheimer's Collaborative (DAC) estão a recolher dados sobre o bem-estar mental e físico, o nível de educação e a segurança económica a partir de um grupo de 100 000 pessoas em Kilifi, no Quénia. Este “Laboratório Vivo” abrange inclusive indicadores climáticos, uma vez que os participantes afirmam frequentemente que as alterações climáticas têm tido um grande impacto nas suas vidas. No seguimento deste estudo, o ICM pode levar a cabo microtestes para testar de forma rápida as intervenções realizadas. Atualmente, o instituto está à procura de financiamento para levar serviços portáteis de imagiologia a estas comunidades rurais.
Em breve, irá liderar em África o estudo FINGERS, financiado pelo Conselho de Investigação Médica do Reino Unido. Com centros de estudo no Quénia e na Nigéria, abrange ainda 12 outros países africanos. É o primeiro do seu género na África Subsaariana e trabalha com as comunidades para identificar fatores de risco para o surgimento de disfunções cognitivas e perceber como adaptá-los de forma culturalmente apropriada e sustentável.
Os participantes nesta investigação, a equipa de saúde e os funcionários do governo estão constantemente envolvidos no projeto, desde as primeiras interações com os antropólogos, com vista a explorar os pontos de vista de cada um, às suas recomendações para tópicos prioritários.
Com o aumento do financiamento, a investigação feita em países de baixos rendimentos está a tornar-se influente no panorama internacional. “No Norte Global, as iniciativas de prevenção são relativamente escassas. Nós podemos estar a liderar essa mudança de paradigma, percebendo como podemos prevenir a demência e reforçar a resiliência das populações", diz Zul.
“A falta de recursos pode estimular a inovação. No Zimbábue, o meu colega Dixon Chibanda sabia que um punhado de psiquiatras não eram suficientes para dar resposta às necessidades do país. Ele teve a ideia de ensinar as avós a ouvir e apoiar os mais jovens (bancos de avós). Esta ideia foi agora adotada a nível global; existem atualmente bancos de amizade até em Nova Iorque."
O ICM está a trabalhar em países sem um sistema abrangente de cuidados médicos, tendo já experimentado, no campo da saúde mental, uma transição, substituindo médicos por serviços de âmbito comunitário. Durante as cheias no Paquistão em 2022, o instituto formou Agentes Femininas de Saúde em Sinde para levarem a cabo avaliações de problemas ao nível da saúde mental e oferecer apoio básico em matéria de terapia cognitiva durante as suas visitas de rotina. Um ano depois, os níveis de depressão e ansiedade dos participantes caíram entre 60% e 70%.
A Nature, uma das revistas científicas mais lidas do mundo, o DAC e o ICM organizaram recentemente uma conferência subordinada ao tema da demência em Nairobi – a primeira conferência da Nature em África. Investigadores, decisores políticos e profissionais de saúde do continente africano e de todo o mundo discutiram os desafios e oportunidades, a necessidade de dados de imagiologia cerebral e de estudos genéticos em África, e de planos de parcerias para determinar o futuro dos cuidados na área da demência.
“Ao agirmos agora, especialmente em África, onde a população é jovem, temos a oportunidade de evitar uma pandemia de Alzheimer”, conclui Zul.