Rede Aga Khan de Desenvolvimento
Paquistão · 16 outubro 2024 · 1 Min
Nasira Wali está a partir pedaços de madeira de zimbro sob a luz ténue da sua sala de estar. Ela coloca o graveto na lareira. As chamas prontamente se avivam. O seu rosto velado brilha. Ela aquece um pouco de leite. É um momento reconfortante, mas a situação de Nasira é bastante desanimadora. A sua família está presa num ciclo de fome. Na sua aldeia e em todo o extremo norte do Paquistão, para quebrá-lo é necessário um esforço extraordinário.
O filho de quatro anos de Nasira, Hafiz, senta-se ao lado da mãe. Olha para o chão durante vários minutos. Quando tinha cerca de nove meses, diz Nasira, começou a chorar todas as noites, a pele ficou “branca” e as mãos e os pés começaram a inchar. “Quando ele não conseguia dormir”, diz, “eu não conseguia dormir. Ver o meu bebé assim... Ficava tão ansiosa.”
Nasira e a sua família vivem numa aldeia chamada Immit, que fica nas encostas sul da grande cordilheira Pamir. Perto da casa de Nasira, existem alguns terrenos verdejantes em socalcos, com trigo, batata e cebola, ladeados por damasqueiros e macieiras. Salgueiros e choupos cintilantes proporcionam sombra. Pode parecer idílico, mas a realidade é bastante diferente: 136 000 crianças com menos de cinco anos em Gilguite-Baltistão – 46% dessa faixa etária – apresentam défice de crescimento.
Em Gilguite-Baltistão, 136 000 crianças com menos de 5 anos apresentam défice de crescimento.
“Somos uma família pobre”, diz Jamjur Naroz, outra mãe com quem falo em Immit. A construção da sua casa ficou a meio, com uma lona cinzenta a proteger a porta da frente. O marido trabalha como operário, ganhando 3 libras por dia. É o rendimento diário total da família. “Não temos dinheiro para ter uma dieta equilibrada”, diz Jamjur. O filho Kaleem, quando recém-nascido, era demasiado fraco para ser amamentado adequadamente. Hoje, com dois anos e meio, apresenta défice de crescimento e um peso abaixo da média.
A subnutrição grave tem consequências que mudam uma vida. Quando a mãe e a criança não consomem macronutrientes (proteínas, hidratos de carbono e gorduras) ou micronutrientes (vitaminas e minerais) em quantidade suficiente durante o período da gravidez e amamentação, as crianças como Hafiz e Kaleem ficam fisicamente debilitadas para o resto da vida. A subnutrição severa dificulta o seu desenvolvimento físico, que abrange, obviamente, os seus cérebros. Têm maiores probabilidades de passarem por dificuldades financeiras numa fase mais avançada da vida. Os seus filhos poderão facilmente ter o mesmo destino. É por isso que os nutricionistas falam sobre o ciclo intergeracional da fome.
Jamjur Naroz, mãe da aldeia de Immit
O Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola (FIDA) está a tentar quebrar este ciclo, combatendo a pobreza através do reforço da agricultura no norte do Paquistão. A Iniciativa de Transformação Económica (ITE) do FIDA está a aumentar o tamanho das pequenas propriedades dos agricultores. Já criou mais de 160 cooperativas para mais de 40 000 agricultores. As cooperativas são cruciais para o desenvolvimento dos agricultores. Partilhar as instalações de armazenamento dos grãos reduz os custos, ao passo que uma maior produção coletiva permite aos agricultores negociar melhores preços. As cooperativas ajudam os agricultores a obterem melhores informações, financiamentos e mercados. Estes benefícios podem aumentar os lucros e a produção. A ITE iniciou também um enorme projeto de infraestruturas. Ao longo das montanhas de Gilguite-Baltistão, o FIDA construiu mais de 430 km de canais de irrigação e 380 km de estradas entre as explorações agrícolas e os mercados. “É uma tarefa enorme e hercúlea”, diz Khadim Saleem, do FIDA, que coordena o projeto da ITE.
O governo do Paquistão está a liderar os esforços para quebrar o ciclo de fome na região e a nível nacional. Mohammad Abbas, diretor de projeto do departamento de saúde em Gilguite-Baltistão, refere-se ao programa nacional de transferência monetária do governo, conhecido como Programa Benazir de Apoio aos Rendimentos (BISP), entre outros. O programa lançado em 2008 distribui mensalmente vales entre 15 e 20 dólares, os quais estão a sustentar as populações mais pobres do Paquistão. O modelo está a funcionar: entre 2011 e 2019, a percentagem de beneficiários do BISP abaixo do limiar da pobreza caiu de 90 para 72%, de acordo com uma avaliação do Banco Mundial publicada este ano. No entanto, embora o BISP tenha conseguido combater a pobreza nesta região do Norte, este é um programa demasiado genérico; são também necessárias intervenções mais direcionadas.
Numa sala de tratamento da clínica de saúde em Immit, Gulsherran Mohdsadik coloca uma fita métrica à volta do braço esquerdo de Urwa Hussain. Gulsherran coloca a menina de quatro anos numa balança. Depois mede a sua altura. Os dados são registados num livro. Gulsherran está a apoiar Urwa no âmbito da Iniciativa de Combate ao Défice de Crescimento na Ásia Central (CASI) da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN).
Há três anos, Urwa sofria de défice de crescimento. Mas, felizmente, fazia parte dos registos da CASI. A equipa da CASI deu formação aos pais sobre técnicas de amamentação, alimentação complementar, diversidade alimentar e higiene. Forneceram ainda um suplemento nutricional chamado Ronaq durante um ano. Monitorizaram todos os meses o crescimento da menina. Ao longo dos últimos três anos, a sua altura e peso atingiram o percentil médio para a idade. Hoje, está a desenvolver-se bem.
Desde 2019, a CASI tem vindo a combater a subnutrição em quase 450 das regiões montanhosas mais remotas do Paquistão, Afeganistão e Tajiquistão. Existem equipas de nutricionistas a percorrer os vales, a falar com os moradores, a avaliar o seu estado de saúde, a aumentar a consciencialização acerca das melhores práticas alimentares e, sempre que necessário, a doar produtos alimentares suplementares de alto valor nutritivo. Os resultados globais são positivos: nos locais onde a CASI trabalha em Gilguite-Baltistão, em apenas cinco anos desde o início do projeto, a prevalência do défice de crescimento entre as crianças com menos de cinco anos caiu de 41 para 35%, ou pouco mais de um em cada três, de acordo com uma avaliação da Universidade Aga Khan. Esta taxa de redução é superior à média global, com base em dados da UNICEF.
Em apenas cinco anos, a prevalência do défice de crescimento entre as crianças com menos de 5 anos caiu de 41 para 35%, uma taxa de redução superior à média global.
Mas, apesar destes programas, muitas famílias continuam a ficar esquecidas. Recordo-me, em particular, do filho de Nasira, Hafiz. A sua anemia é tão grave que ele não se consegue concentrar, e por isso não pode ir à escola. Tem problemas gástricos, pelo que não pode comer com facilidade. Nasira tem de dar ao filho medicação como Trimetabol, para tratar a sua falta de apetite e problemas de digestão. Reparo que ele usa um amuleto de couro, que contém versículos do Alcorão. Os pais rezam por ele.
Enquanto escrevo isto, depois da minha estadia no Paquistão, pergunto-me qual poderia ter sido o futuro de Hafiz. Se ao menos ele e a mãe tivessem sido capazes de comer de forma adequada naqueles primeiros anos, quando ela estava grávida e durante um ano ou dois após o nascimento dele. Imagino que talvez ele pudesse ter ido estudar engenharia, medicina, direito. Podia ter apoiado a sua família e a sua comunidade. Podia ter ido atrás dos seus sonhos.
O nosso sonho deve ser o de um mundo onde todos possam ganhar mais de 3 libras por dia; onde todos possamos prosperar. Isso começa no que comemos.
Harry Johnstone é um jornalista freelancer, cujos artigos sobre alterações climáticas e questões de segurança alimentar têm sido publicados no Financial Times e no The Guardian.
Fotos da AKDN / Arsalan Haider
Este artigo foi publicado no Dia Mundial da Alimentação de 2024 em coordenação com o The Telegraph.