Paquistão · 20 novembro 2023 · 5 Min
“Está na altura de tratar a crise do clima e da natureza como uma emergência de saúde global”, lê-se num apelo à ação publicado em mais de 200 publicações da área da saúde no período que antecede os encontros da COP 2023-24 acerca das alterações climáticas e da biodiversidade.
O Dr. Zulfiqar A. Bhutta, Diretor e Fundador do Centro de Excelência em Saúde da Mulher e da Criança e do Instituto para a Saúde e Desenvolvimento Global da Universidade Aga Khan (AKU), está bastante familiarizado com a forma como os mais vulneráveis são afetados por fatores que vão para lá da esfera tradicional da saúde – seja ao nível da segurança alimentar, dos conflitos ou do clima. No Dia Mundial da Criança, ele analisas as formas de melhorar a situação das mães e das crianças.
Quem sofre as consequências?
“Alguns dos problemas relacionados com a questão de género, particularmente os efeitos do aumento das temperaturas, ainda não são bem conhecidos. E mesmo quando são identificados, não existem muitas soluções em vigor.”
As mulheres são mais propensas do que os homens a trabalhar em casa, e as habitações de baixa qualidade, sem eletricidade para alimentar ventoinhas nem água corrente, deixam as mulheres vulneráveis a temperaturas altíssimas. Para além disso, aquelas que não possuem uma sanita dentro de casa evitam beber água para não ter de urinar nos dias em que passam muitas horas em casa. Durante uma onda de calor, isto aumenta significativamente os riscos de desidratação e morte.
Para as mulheres grávidas, o calor extremo aumenta o risco de abortos espontâneos, partos prematuros e complicações no parto. A nível mundial, mais de 20% das crianças com menos de cinco anos sofrem de atrasos no crescimento, mas isso não se deve apenas a uma nutrição desadequada:
"A exposição ao calor em mulheres grávidas tem um enorme impacto nos partos, potencialmente inclusive efeitos intergeracionais", diz o Dr. Bhutta. “No Paquistão, descobrimos que grande parte da subnutrição infantil na última década ou duas está realmente relacionada com a potencial exposição a altas temperaturas atmosféricas. As taxas de mortalidade infantil podem aumentar em 25% devido aos efeitos das alterações climáticas. Mas isto pode ser evitado. As soluções estão nas nossas mãos.”
A mudança dos padrões de precipitação está a afetar as plantações e a causar subnutrição, com as mulheres a verem-se muitas vezes particularmente desfavorecidas quando os recursos domésticos se tornam limitados. Quando a comida é escassa, elas comem menos do que os homens.
Sempre que as inundações ou outros desastres agravados pelo clima destroem ou impedem o acesso à prestação de cuidados de saúde, ou quando obrigam mesmo ao deslocamento das comunidades, as implicações na saúde são significativas. As alterações climáticas também aumentam a propagação de doenças transmitidas por vetores e pela água, como a dengue e a febre tifoide. “Se existir insegurança ao nível das fontes hídricas, podemos imaginar o risco que isso representa para a agricultura e para a segurança alimentar, e as consequências decorrentes do aumento de distúrbios diarreicos.”
O Dr. Bhutta acrescenta: “Alguns dos problemas de saúde mental provocados pelas alterações climáticas revelam-se desproporcionalmente prevalentes entre os jovens, porque estes não vislumbram um futuro como consequência das alterações climáticas. O impacto deste flagelo é muito maior neles do que em pessoas que já têm 80 ou 90 anos.”
Como podem os estudos em saúde produzir mudanças?
O Dr. Bhutta trabalha na área da saúde materno-infantil desde a década de 1970 e afirma que "As mulheres e crianças, particularmente as crianças pequenas, têm de estar no centro dos objetivos de desenvolvimento sustentável para que possamos alcançar o nosso potencial de capital humano."
Um dos seus primeiros estudos concluiu que, na Ásia Meridional, mais de metade das mortes de recém-nascidos e crianças ocorriam em aldeias ou zonas rurais, nas áreas com menos prestadores de serviços de saúde. Ele tentou perceber se a promoção do contacto por parte da Trabalhadoras do Sector da Saúde do Paquistão com grupos de grávidas poderia reduzir a mortalidade neonatal na zona rural de Sinde, e observou uma redução tão significativa nos nados-mortos e na mortalidade neonatal que enviou a sua equipa para confirmar estes números. A Índia adotou pouco depois esta prática junto dos seus profissionais de saúde de Asha, demonstrando como a pesquisa de implementação em larga escala pode influenciar as políticas e afetar populações inteiras.
Numa altura em que se aproxima das quatro décadas ao serviço da AKU, com um histórico de prémios e cargos de topo, o Dr. Bhutta está a liderar três estudos internacionais para melhorar a saúde e a nutrição das crianças e adolescentes, abordar a saúde das mulheres e crianças em contextos de crise humanitária e de conflito, e enfrentar os desafios das alterações climáticas e da saúde de mulheres e crianças em populações de risco da Ásia Meridional. Como é que ele incorporou fatores tão variados no seu trabalho de melhoria da saúde materno-infantil?
Que outras medidas podem proteger os mais vulneráveis?
Quando as cheias de 2010 obrigaram à deslocalização de cerca de 10 milhões de pessoas no Paquistão, o seu grupo de investigação na AKU criou campos de saúde que trataram mais de um milhão de pessoas. “Revelou-se óbvio para mim naquela altura que havia vários fatores fora do sistema de saúde convencional que tinham impacto na saúde, no bem-estar e na nutrição de mulheres e crianças. Uma delas eram as alterações climáticas. Outro era o facto de os problemas que afetavam as populações frágeis, como conflitos ou deslocalizações, também terem uma grande influência naquilo que podíamos ou não fazer. Quase 40% do ónus de mortes em crianças, mulheres e recém-nascidos estão em geografias afetadas por múltiplas crises, não apenas um único problema. Então comecei a pensar no que se poderia fazer para desenvolver a resiliência.
“No Paquistão, há cerca de oito anos, aconteceu um evento de calor extremo em Karachi que matou cerca de mil e quinhentas pessoas num só dia, mais de metade crianças. E isso aconteceu porque ninguém estava preparado para isso. Ninguém identificou os problemas das famílias e das crianças que vivem em bairros de lata que se tornam verdadeiros fornos debaixo do calor do verão.
“Isto levou a algumas intervenções governamentais como a abertura de linhas telefónicas, serviços de emergência e sistemas de alerta precoce. Mas as comunidades também se organizaram para desenvolver a sua resiliência com abastecimento de água e com voluntários capazes de proteger os cidadãos mais em risco. De lá para cá, temos tido outros eventos igualmente severos. No entanto, a mortalidade não voltou a ser tão alta. Pensamos que podemos melhorar ainda mais a organização das comunidades rurais em torno da proteção de mulheres, crianças e idosos face às consequências do clima.”
O Dr. Bhutta considera que os pediatras como ele têm uma certa responsabilidade. "Não podemos apenas ficar a ver o que se está a passar. Temos de estar na linha da frente do debate com os políticos acerca da importância de abordar esta questão e garantir que as estratégias são baseadas em evidências. Não há um comprimido para as alterações climáticas. Ninguém vai esperar 30 anos para que as emissões de carbono diminuam e para que posteriormente se veja o impacto disso.
“Temos de criar impactos nas vidas e nos meios de subsistência. Precisamos de proteção social e de apoio para as pessoas afetadas pelas alterações climáticas, algo que não está necessariamente sob a alçada dos ministérios da saúde. O trabalho com as nossas comunidades rurais ao nível da agricultura, da segurança alimentar e da biodiversidade será uma parte muito importante da resposta climática. E a construção de colaborações estratégicas com outros parceiros e programas é extremamente importante.
“Os hemisférios norte e sul não são mundos diferentes. As alterações climáticas afetam toda a gente e as consequências não precisam de passaportes nem vistos.”