Não disponível · 4 março 2024 · 7 Min
No arranque de uma nova série de conversas acerca do futuro do sistema internacional no âmbito das Palestras Palliser – uma parceria entre o Seminário Global de Salzburgo, o 21st Century Trust e a Fundação Aga Khan (AKF) – Pascal Lamy deu uma palestra no Centro Aga Khan em Janeiro acerca do futuro da governação global e da cooperação internacional num mundo cada vez mais fraturado. A AKF conversou com Lamy antes do seu discurso para saber mais.
Como devemos interpretar o estado atual da ordem internacional? Com vinte e cinco anos dentro do novo milénio, com novos conflitos na Europa e no Médio Oriente, para além de outras tendências ameaçadoras, a análise de Pascal Lamy é severa: é “uma confusão”.
Lamy tem uma longa carreira de trabalho em governos, instituições multilaterais e consultoria política, e está em Londres para proferir a oitava de uma série de Palestras Palliser no Centro Aga Khan, preparando-se para uma tarde de debates acerca do momento atual da governação a nível global e da cooperação internacional.
“Está em muito mau estado, e creio que é um momento oportuno para olharmos para isso. Estou neste sector há 40 anos... Nunca vi tanta confusão.” Quando solicitado a desenvolver as razões que o levam a afirmar isto, Lamy refere a rivalidade EUA-China. “Esta relação é uma rivalidade geoestratégica e, neste momento, ambos acreditam que estão numa posição bastante vulnerável em relação ao outro – e esta é uma situação semelhante à Guerra Fria. Isto contamina todo o contexto da cooperação internacional.”
Com uma carreira de quatro décadas e meia, entre os cargos mais importantes que Lamy já ocupou incluem-se o de Director-Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) entre 2005 e 2013, Presidente e Vice-Presidente do Fórum de Paris para a Paz e Chefe de Gabinete do Ex-Presidente da Comissão Europeia, já falecido, Jacques Delors.
Tendo trabalhado tanto nos bastidores como na linha da frente em várias das iniciativas mais bem-sucedidas do século XX – o Tratado de Schengen, a criação de um mercado único, e o Euro, que foram fundamentais para a União Europeia, bem como o Acordo de Facilitação do Comércio na Organização Mundial do Comércio – Lamy tem a plena noção de onde residem os principais desafios à atual ordem mundial.
“As organizações são dirigidas pelos seus membros; este é um princípio fundamental do sistema internacional existente – a sua soberania. Os tratados dependem da vontade de entidades soberanas; as organizações dependem da vontade daqueles que construíram estas organizações. Eu fui o líder de uma delas durante boa parte da minha vida, e sei que elas querem manter o controlo.”
“Outro dos problemas é a obsolescência do sistema... e as mudanças significativas que foram operadas nos poderes e responsabilidades de distribuição nos últimos 50 anos. Esta é uma das explicações para o facto de vários países não o apreciarem, e compreensivelmente. Se olharmos para a divisão dos votos à mesa do FMI, esta não reflete de forma adequada o atual sistema financeiro mundial.”
Os países com as maiores preocupações são predominantemente economias emergentes, como China, Índia e Brasil, representadas no chamado bloco dos BRICS – cerca de 42% da população mundial e que, em 2023, representavam 32% do PIB global em matéria de paridade do poder de compra. “O que os BRICS querem fazer em conjunto é uma questão em aberto”, continua Lamy, “O que é claro é que é uma aliança que está insatisfeita com o sistema.”
No entanto, para Lamy, isto não é suficiente. “A ausência de uma alternativa clara é uma desvantagem para a reforma... É absolutamente verdade que o Conselho de Segurança não reflete o atual equilíbrio de forças, e é também verdade que noutras organizações o equilíbrio de direitos e responsabilidades tem de ser abordado. E é também óbvio que subjacente a estas organizações está a Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma base de valor que começa cada vez mais a ser questionada abertamente por alguns países... [o que] significa que provavelmente existe espaço para uma renegociação. Mas até agora, isto ainda não aconteceu.”
Ao refletir sobre este impasse, Lamy discorre: “Talvez alguém que não tenha nada a perder, como o Secretário-Geral da ONU, possa ser suficientemente ousado e dizer, 'Olhem, pessoal, vou apresentar uma solução. É assim que devemos avançar para uma reforma. Agora entendam-se!’”
Lamy é fundador do Fórum de Paris para a Paz e presidente da Comissão para a Superação das Alterações Climáticas, um grupo independente de líderes globais de renome que têm vindo a desenvolver uma estratégia “ousada e exequível” para mitigar os riscos decorrentes de se exceder o limite do aquecimento global em 1,5 graus Celsius, e acredita ter sido identificada uma possível abordagem à governação global e à cooperação internacional.
“Creio que coletivamente sabemos qual o caminho a seguir... O que fizemos [com a Comissão] foi garantir que existe em cima da mesa uma visão holística e completa das várias opções – algo que ainda não tinha acontecido.” Embora os tratados como o Acordo de Paris sejam importantes para a construção de um consenso entre as nações, especialmente em relação à crise climática, eles são também, segundo Lamy, representativos de uma “estrutura de governação internacional muito fraca”. “O preço disto”, diz, “é que fazemo-lo à nossa maneira, baseados em NDC, Contribuições Nacionalmente Determinadas – e uma série de contribuições nacionais diferentes e descoordenadas não irão resolver o problema.”
Os desafios associados a esta abordagem são, como Lamy afirmou, mais evidentes nos sistemas financeiros e no que descreve como a “polarização Norte-Sul face à ação climática”. Apesar de historicamente o Norte ser responsável por emitir a maior quantidade de dióxido de carbono para a atmosfera, os padrões de emissões estão a mudar. No entanto, o impacto das alterações climáticas e a sequência de fraturas associadas irão provavelmente crescer nos próximos anos – tornando-se cada vez mais óbvia a perceção de que “está atingir de forma desproporcional os países mais pobres que não têm responsabilidades”.
“Existe a ideia de que o Norte tem de pagar pelo Sul. A pergunta é: quanto? Quais são os recursos? Quais são as condições para o fazer?... Enquanto o sistema de capital do mercado global não der o devido valor à natureza, será muito difícil conseguir a enorme quantidade de dinheiro necessário para a transição climática e da biodiversidade.”
É vital ter em conta estes desequilíbrios quando se pensar a ação climática. Certas opções para mitigar as alterações climáticas que podem parecer razoáveis para alguns – como a geoengenharia – podem afigurar-se repletas de riscos injustificados para outros. “Para muitos países soberanos”, continua Lamy, “o risco-benefício é diferente, porque eles sabem qual o risco que correm, não daqui a cinco anos, não daqui a 10 anos, não daqui a 20 anos, mas no próximo mês, no próximo verão.”
Incorporando visões de todo o mundo, a Comissão para a Superação das Alterações Climáticas ofereceu um conjunto integrado de sugestões para alcançar um “mundo mais seguro, mais limpo e mais igualitário“, definido por aquilo a que chamaram “Agenda CARE” – Cortar, Adaptar, Retirar, Explorar, que, assegura Lamy, “é a ordem de prioridade certa.” Ele acredita que a Comissão é demonstrativa da forma como a comunidade internacional pode estabelecer e fortalecer sistemas no futuro, mais libertos das condicionantes políticas convencionais.
“Não vamos construir catedrais, tratados, organizações – porque este é um privilégio dos soberanos que podem decidir participar, ou não, dependendo da sua vontade, nos respetivos compromissos.” Pelo contrário, ao reunir ex-chefes de governo, ministros nacionais, diretores de organizações intergovernamentais, líderes de grupos ambientais e peritos académicos, – como a Comissão para a Superação das Alterações Climáticas tem feito – a capacidade de conhecimento e o pragmatismo para analisar questões internacionais ficam agregados. “Não estou a dizer que o sistema internacional existente não possa ajudar, mas dada a situação em que estamos, nomeadamente em matéria de geopolítica, temos de confiar em abordagens mais pragmáticas... a primeira família é o multilateralismo, a segunda família é aquilo a que chamo de polilateralismo.”
Quando questionado sobre a diferença que as organizações como o Fórum de Paris para a Paz ou a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento podem fazer na promoção de uma melhor cooperação internacional e ação climática, Lamy refere a sua “cultura de fazer as coisas acontecerem” e a sua abordagem ascendente, que cria alianças e lança iniciativas guiadas por objetivos.
“Está a começar de um ponto de vista diferente... Vamos trabalhar com não-soberanos que hoje são agentes relevantes a nível internacional: ONG, grandes multinacionais, importantes instituições académicas, cidades, regiões. Vamos ser pragmáticos... vamos identificar uma série de questões e problemas e vamos segmentá-los de modo a que possam ser resolvidos por alianças guiadas por objetivos. É um jogo diferente.”
Para navegar com sucesso pelos múltiplos aspetos que constituem “a confusão”, Lamy opta por aquilo a que chama “polilateralismo”: trabalhar com diferentes partes interessadas em vez de diferentes soberanos. Isto significa desenvolver formas híbridas de organização que possam mobilizar entidades diferentes e diversificadas – com experiências práticas de âmbito local que funcionem como pilares fundamentais. A resposta à questão de como construir um mundo mais justo e melhorar a cooperação internacional deve começar com uma ação colaborativa. Existem vantagens em haver uma diversidade de abordagens; “reaprender a trabalhar em conjunto, pouco a pouco, e reconstruir a confiança de baixo para cima, é o caminho a seguir para aqueles que compreendem os enormes perigos das dinâmicas atuais que resultam em mais e mais guerras”.