Suíça · 9 março 2021 · 7 Min
Luis Monreal é o Diretor-Geral do Fundo Aga Khan para a Cultura. É especialista em conservação, historiador da arte e arqueólogo, e fez parte da estrutura de muitas instituições. Foi Curador dos Museus de Barcelona (1965-1974) e Secretário-Geral do Conselho Internacional de Museus (1974-1985). Foi Diretor do Instituto Getty de Conservação (Los Angeles, 1985-1990) e Diretor-Geral da Fundação “La Caixa” (Barcelona, 1990-2001). Também foi membro de várias missões arqueológicas em Núbia, Sudão, Egito e Marrocos. É autor de vários livros e artigos sobre arte e arqueologia. É membro da Administração da Fundação Gala-Salvador Dalì (Espanha), membro da Real Academia de Belas Artes (Barcelona, Espanha), Comendador da Ordem das Artes e Letras (França) e da Grã-Cruz de Isabel a Católica (Espanha).
Qual a relação da cultura com o desenvolvimento?
A discussão central tem sido saber como é que a cultura, integrada com instrumentos mais tradicionais de desenvolvimento, pode ser usada para melhorar a vida das pessoas em contextos urbanos, carenciados e até remotos. Como é que a cultura pode criar empregos, contribuir para aumentar os rendimentos, ser um fator de bem-estar, melhorar a saúde, potenciar os espaços urbanos, reforçar o respeito pela diversidade, ser um referencial para a identidade e individual e restaurar inclusive o orgulho e a esperança?
Luis Monreal.
AKDN
disposição da comunidade. Por isso, usamos a cultura como uma alavanca, um trampolim para melhorias na qualidade de vida em geral. Acreditamos que a cultura em geral e o património histórico em particular podem ser dinamizadores de uma comunidade. Vejamos o ressurgimento das peregrinações às khanqahs no Paquistão, ou os dois milhões de pessoas que todos os anos visitam o Parque Azhar no Cairo, ou os piqueniques em Baghe Babur em Cabul.
As operações culturais podem criar oportunidades económicas imediatas numa comunidade. As atividades agrícolas podem demorar a tornar-se uma fonte estável de rendimentos, mas o desenvolvimento de recursos no sector do património cultural pode beneficiar a comunidade de forma rápida, principalmente através de uma série de negócios relacionados com o turismo. Para as comunidades que só veem nuvens no horizonte ou que tenham já perdido a esperança, isto é importante.
Sua Alteza o Aga Khan percebeu o poder da cultura quando, em 1983, perguntou, “Qual será o impacto disto nas gerações futuras? Será que os jovens destes países vão reconhecer a sua própria identidade cultural nestes edifícios daqui a dez, quinze ou vinte anos? Ou irão ver-se numa situação em que terão alcançado a independência política, mas terão uma extrema dificuldade em reavivar as suas próprias tradições culturais? Quais serão as consequências... quando o património cultural se perder?” (Entrevista com Paul Chutkow: “A Visão do Aga Khan”, Revista Connoisseur, Setembro de 1983)
A resposta do Fundo a esta pergunta é a necessidade de preservar o património cultural para que possa ser apreciado pelas gerações presentes e futuras. Acreditamos que a cultura - e refiro-me a ela enquanto património histórico tangível como monumentos, parques, jardins e museus, e enquanto manifestações imateriais da cultura, como a música - deve ser preservada e desenvolvida de uma forma abrangente.
Por último, tal como em todos os países em que atua, o AKTC, assim como a AKDN, tem uma visão de longo prazo. Alguns dos nossos programas, iniciados há mais de 40 anos, mostram como a criação de parques e jardins, a conservação de edifícios de referência, as melhorias no tecido urbano ou a revitalização do património cultural podem proporcionar condições para o florescimento de outras formas de desenvolvimento.
Esta vasta experiência adquirida tem revelado que existem benefícios sociais e económicos que são gerados a partir da conservação do património cultural. Estes benefícios incluem a promoção de uma boa administração, o crescimento da sociedade civil, o aumento dos rendimentos e das oportunidades económicas, um maior respeito pelos direitos humanos e uma melhor gestão do ambiente.
Portanto, não pensamos no curto prazo, mas sim nas próximas décadas e gerações.
Como pode a reabilitação cultural ser considerada como ajuda humanitária? Concretamente, as iniciativas que estão a levar a cabo nos souks de Alepo, que já valeram ao AKTC um prémio ICCROM, podem ser consideradas de natureza humanitária?
Para além dos cuidados de saúde de emergência e da distribuição de alimentos, o Fundo Aga Khan para a Cultura é frequentemente uma das primeiras agências da AKDN a iniciar as operações em cenários de crise. Consideramo-lo como ajuda humanitária de emergência - primeiros socorros, se preferir.
Estivemos envolvidos em vários países com cenários de guerra, pós-guerra ou outras crises, incluindo o Afeganistão, Síria, Paquistão, Tajiquistão e Mali. Nestes contextos, o património cultural pode - e deve - ser um componente de um conjunto de medidas de ajuda humanitária.
Partilhamos este conceito com outras organizações que têm históricos bem consolidados: entre os quais o ICCROM, o Prince Claus Fund e a Iniciativa Smithsonian para a Recuperação Cultural. O manual de Primeiros Socorros para o Património Cultural em Tempos de Crise, publicado pelo ICCROM após quase uma década de experiência no terreno, oferece um guia de referência - para os profissionais do património cultural e agentes humanitários - que integra a salvaguarda do património nas atividades de emergência e recuperação.
A Cruz Vermelha Internacional (através de uma publicação acerca de “Legislação e Política Humanitária”) também defende que o património cultural deve ser tido em conta no contexto dos programas humanitários: “De Palmira a Timbuktu, temos observado que a destruição de locais culturais e religiosos durante conflitos armados tem profundos efeitos psicológicos, deixando as pessoas dissociadas, traumatizadas, com algumas até a serem perseguidas. A proteção da propriedade cultural tem de ser reconhecida e abordada de uma melhor forma enquanto uma questão humanitária por direito próprio.”
Em 2019, a UE e o Iraque acordaram que o pacote da UE de “ajuda humanitária e apoio ao desenvolvimento” incluiria: “o restauro e reabilitação do património cultural”. Da mesma forma, o Centro de Recursos de Administração e Desenvolvimento Social (um centro de recursos liderado pela Universidade de Birmingham), compara a cultura a uma necessidade: “A cultura é o cimento que mantém uma sociedade unida...A cultura é, por isso, uma necessidade básica - e deve ser um elemento natural da ajuda humanitária de emergência e dos processos de reconstrução.”
Na Síria, o AKTC realizou um projeto-piloto que consistiu na reconstrução do Souk de Alepo, um dos mais importantes exemplos da arquitetura secular medieval no mundo muçulmano. O monumento tinha ficado seriamente danificado durante o conflito. Não poderia ficar abandonado à sua sorte. Para além disso, a sua reabilitação pode oferecer oportunidades a uma comunidade severamente penalizada pela guerra civil. O nosso principal objetivo era voltar a pôr em funcionamento um local histórico que desempenha um papel socioeconómico vital na vida da comunidade.
Como é que o AKTC, especificamente, pode contribuir para o desenvolvimento de um país no qual estejam presentes outras instituições internacionais e agências da AKDN?
A nossa abordagem passa por reunir numa determinada área uma vasta gama de agências técnicas para que estas trabalhem em conjunto. Por exemplo, quase todas as agências da AKDN trabalham no Afeganistão - um país onde a AKDN e os seus parceiros já alocaram mais de mil milhões de dólares no apoio ao desenvolvimento desde 2002. Os nossos programas culturais em Cabul, Herat, Balkh e Badakhshan já restauraram mais de 90 edifícios históricos, mas levámos também a cabo projetos humanitários, sociais e económicos que abrangeram mais de 240 cidades e vilas nas 34 províncias do país.
No Afeganistão, como em outros países, tentámos integrar as atividades culturais no desenvolvimento em geral. Isto é algo único, creio. Sentimos que o património cultural deve fazer parte do conjunto multidisciplinar de medidas de desenvolvimento que possam efetivamente aumentar as perspetivas económicas - e dar esperança - às populações em situações dramáticas.
Em que medida é que considera que um parque ou um espaço verde pode ajudar no desenvolvimento de uma cidade como Deli ou o Cairo?
Em primeiro lugar, os parques têm um impacto económico. Eles criam empregos permanentes e geram rendimentos. Os nossos projetos dos parques em Deli e no Cairo, por exemplo, são autofinanciados. No Cairo, as receitas da bilheteira e a operação dos restaurantes subsidiam de forma cruzada a manutenção do Parque Azhar. Desta forma, o sector público não tem encargos financeiros com o Parque - sendo que o Cairo é um dos municípios mais sobrecarregados do mundo.
Deve ser realçado que em várias cidades com crescimento acelerado no mundo muçulmano nós tentamos compensar a escassez de zonas verdes. No Cairo, por exemplo, antes da construção do Parque Azhar, uma estimativa sugeria que havia uma média de menos de um metro quadrado de zonas verdes por habitante.
Além do mais, os parques são normalmente “plataformas” de onde se pode observar o esplendor do património cultural da cidade. Em Deli, olhamos para os monumentos mogóis e aprendemos acerca da sua história. No Cairo, vemos a Mesquita Al Azhar, a Cidadela e muitos outros monumentos de destaque na Cidade Velha. Por isso, os parques que construímos contribuem para a valorização do ambiente cultural.
Ao mesmo tempo, nós trabalhamos para proporcionar espaços de lazer onde as pessoas de diferentes esferas e contextos sociais se possam reunir e interagir. Eles devem ser locais de encontro.
Por que razão se envolvem na criação de planos diretores, como, por exemplo, em Khorog, Lahore ou Cabul?
Os planos diretores abrangem uma ampla variedade de vertentes que podem melhorar a qualidade de vida no geral. Normalmente, procuramos melhorar vários aspetos do contexto urbano através de planos diretores - como estamos a fazer em Khorog, Lahore ou Cabul. Tentamos redinamizar o centro da cidade e deslocar o crescimento demográfico para longe das áreas periféricas. Consideramos igualmente que um plano diretor deve contribuir para uma variedade de estilos de espaços habitacionais, comerciais e culturais, cada um dando resposta às diversas necessidades da comunidade residente. O plano diretor deve também promover o design verde que leve a um aumento da eficiência energética em habitações e infraestruturas.
Por exemplo, na Cidade Murada de Lahore - onde trabalhamos desde 2008 - têm havido melhorias espetaculares ao nível da estrutura da cidade histórica e da qualidade do ambiente. O processo de mudança foi gradual, mas os benefícios para os moradores estão hoje à vista de todos. Mais recentemente, o AKTC esteve envolvido em George Town, Penang. Aqui, como em outras geografias onde trabalhamos, o património cultural não é apenas um dinamizador, sendo também um motor de desenvolvimento económico.
Queremos funcionar como um catalisador para o desenvolvimento ético. Na verdade, a gestão do nosso ambiente é algo que está incorporado na ética da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento. É nossa responsabilidade coletiva fazermos uma boa gestão do planeta - deixar às gerações futuras um mundo em melhores condições do que aquelas em que o recebemos.