Kenya · 3 abril 2022 · 10 Min
A Dra. Miriam Mutebi é Oncologista Cirúrgica de Mastologia e Professora Assistente no Departamento de Cirurgia do Hospital da Universidade Aga Khan em Nairobi, no Quénia. É a Presidente Eleita da Organização Africana para a Investigação e Formação em Oncologia, Presidente da Sociedade de Hematologia e Oncologia do Quénia e membro do Conselho de Administração da União para o Controlo Internacional do Cancro. É cofundadora da Associação Pan-Africana de Cirurgiãs e faz parte da Associação de Cirurgiãs do Quénia.
Dra. Miriam Mutebi
AKU
Também orienta colegas e realiza investigações sobre as barreiras em cuidados de saúde que as mulheres na África Oriental enfrentam quando têm cancro. De algum modo, a Dra. Mutebi arranjou tempo para nos falar mais acerca disso.
Tem vindo a investigar as barreiras enfrentadas pelos pacientes na África Oriental no acesso aos cuidados de saúde. Que é que já descobriu?
Preocupações financeiras: Pagar com recursos próprios para ter acesso a cuidados de saúde resulta frequentemente em toxicidade financeira e despesas catastróficas com a saúde. Os seguros hospitalares, como o Fundo Nacional de Seguros Hospitalares no Quénia, têm ajudado a mitigar alguns destes custos, mas, em última análise, muitos pacientes continuam a suportar alguns destes custos avassaladores.
Atrasos nos tratamentos: Muitos pacientes na África Subsaariana têm de passar por três ou quatro profissionais de saúde antes de receberem um diagnóstico definitivo. Se o paciente precisar de uma biópsia, terá de pagar a agulha, os testes patológicos iniciais e quaisquer testes adicionais, causando um maior atraso.
Há também uma falta de conhecimento entre os profissionais de saúde acerca dos sinais e sintomas comuns do cancro da mama. Sabemos de casos de utentes tratadas com antibióticos durante meses a fio devido a uma “mastite não-resolvida” e a quem lhes é transmitido que não se devem preocupar com o surgimento de um novo nódulo porque este se deve ao facto de estarem a amamentar... quando chegam até nós, infelizmente, já os tumores progrediram consideravelmente.
Barreiras socioculturais: Não costumamos falar disto. Em muitas partes da África Oriental, as mulheres não são as principais decisoras no que à procura de cuidados de saúde diz respeito. Enquanto africanos, temos no sentido de comunidade a nossa força. Mas isto pode ser uma faca de dois gumes, quando leva a que muitos pacientes não tenham poder de decisão em matéria de tratamentos, com a sua comunidade a dizerem-lhes, “nós decidimos por si, é isto que vai acontecer”. Existe também um sentimento de fatalismo associada ao cancro, em que se acredita que o cancro equivale à morte, por isso estamos a tentar mudar as narrativas à volta disso. O estigma do cancro também tem a sua importância.
Como é que este estigma afeta a procura de tratamento?
Infelizmente, grande parte do estigma em torno dos cancros reprodutivos tem por base a humilhação do doente. Algumas comunidades dizem que “o cancro da mama surgiu porque alguém que não o seu marido teve acesso ao seu peito”, ou “apanhou cancro porque fez um aborto”. Estes mitos fazem com que as mulheres fiquem relutantes em revelar os seus cancros e isso pode contribuir para um atraso no acesso aos cuidados.
Uma paciente disse que olhavam para ela como se “já tivesse um caixão à espera”. Era assim que as pessoas a viam, ninguém queria interagir com ela, algumas pessoas acreditavam que era contagioso e ficavam surpreendidas por vê-la ainda viva após alguns meses.
O estigma é um conceito com muitas nuances... Temos a experiência vivida da doente, que chega a ser antecipatória, com esta a pensar que será vítima de discriminação.
Uma paciente teve a situação desconfortável de ter estado presente num encontro de mulheres em que se falava de uma amiga comum com cancro e de ter sido determinado que esta iria morrer. Ela deixou de ir a esses encontros, pois sabia o que a esperava se divulgasse inadvertidamente o estado do seu cancro.
Também tive pacientes que foram demitidas do trabalho porque foram diagnosticadas, ou porque o empregador não apreciou o facto de precisarem de uma dispensa para a realização da terapia. A definição de estigma é tão vasta que temos de olhar para todas estas facetas... ou corremos o risco de prestar um mau serviço.
Como podemos combater este estigma?
Estamos a aprender bastante com a observação de outras doenças. No início dos anos 2000, na África Subsaariana, os pacientes com VIH eram abandonados nos hospitais e havia geralmente uma sensação de desespero. Mas os esforços deliberados por parte dos Ministérios da Saúde, do Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Combate à SIDA e de outras associações na melhoria do acesso a antirretrovirais, e as iniciativas alargadas e consistentes de sensibilização para a questão do VIH, fez desta uma doença crónica como qualquer outra e transmitiu-nos lições importantes que podem ser replicadas ao nível da redução do estigma à volta de uma doença.
Penso que estamos agora a assistir a uma maior consciencialização na nossa região. Tem por base iniciativas de sensibilização bastante poderosas levadas a cabo por pacientes e sobreviventes de cancro, e pela comunidade de saúde como um todo, procurando encontrar formas de mudar as narrativas. Os decisores políticos na região desenvolveram planos e políticas nacionais de controlo do cancro. A sua implementação, juntamente com a cobertura por fundos hospitalares nacionais, ajudaram a melhorar o acesso aos serviços de diagnóstico e tratamento oncológico. Os clínicos sabem que os cancros, quando são detetados precocemente e tratados adequadamente, oferecem uma excelente hipótese de sobrevivência.
No entanto, a menos que as pessoas saiam à rua e digam “Consegui tratar o meu cancro, vou seguir com a minha vida”, então a narrativa consolidada à volta da morte e do cancro vai continuar.
O que será o futuro dos cuidados oncológicos?
Uma abordagem multidisciplinar: os cuidados oncológicos são complexos e envolvem múltiplas especialidades. Infelizmente, em muitas partes da África, os pacientes costumavam receber cuidados do primeiro médico que os observasse. Se fossem observados em primeiro lugar por um cirurgião, em menos de nada estavam na sala de operações. Se fossem vistos primeiro por um oncologista, talvez recebessem quimioterapia primeiro.
Felizmente, isto está a começar a mudar, devido a uma consciência crescente na região para a necessidade de abordagens multidisciplinares aos tratamentos e ao conceito de cuidados personalizados, com o tratamento a ser adaptado a cada paciente. Isto tem por base o tipo de cancro, incluindo as características únicas do tumor, a idade, as comorbidades e as preferências dos pacientes. Precisamos de uma abordagem multidisciplinar em que reunamos todos estes médicos qualificados para criar o melhor plano de tratamento para cada paciente em particular.
Isso também ajuda a promover a tomada de decisões partilhadas. É importante ter um paciente bem informado, cujos desejos tenham sido reconhecidos e incorporados no plano de tratamento, pois esta é uma jornada que queremos ultrapassar em conjunto com os nossos pacientes. É fundamental transmitir uma compreensão sobre o que se pode antecipar, com vista a reduzir o sofrimento e a incerteza e a incentivar a adesão às terapias.
Como parte disso, desenvolvemos uma clínica da mama multidisciplinar. A equipa inclui um oncologista médico, um oncologista cirúrgico e um oncologista de radioterapia. Recebemos os pacientes e as suas famílias para que façam perguntas, expressem os seus desejos e desenvolvam em conjunto com os médicos um plano de tratamento com o qual se sintam envolvidos e confortáveis.
Da nossa experiência preliminar desde Julho de 2021, temos tido uma satisfação de quase 100% neste processo. Os pacientes gostam de ter esta perspetiva abrangente e a oportunidade de ajustar o seu plano de tratamento antes de iniciarem os tratamentos.
Educação: É importante formar a próxima geração de profissionais de saúde para que reconheçam os sinais e sintomas de cancro; particularmente os prestadores de cuidados de saúde primários que são a porta de entrada nos cuidados de saúde.
Também precisamos de educar o público, pois pelo menos 30 a 50% dos cancros são evitáveis através de uma simples dieta e exercício. Sabemos que o cancro na nossa região afeta as pessoas nos seus melhores anos de produtividade e é muito menos dispendioso quando é tratado precocemente. Está na altura de olhar para a saúde como um investimento económico!
Liderar a mudança: A sensibilização da população ativa tem um papel fundamental. Enquanto comunidade de saúde num sentido mais vasto, precisamos de forçar uma mudança de forma coletiva, onde quer que estejamos, seja a nível clínico ou político, que resulte em melhores consequências para os nossos pacientes.
Porque escolheu trabalhar no Hospital Aga Khan?
Trabalhei aqui em várias funções na universidade, como médica assistente, residente de cirurgia, instrutora e, por fim, como professora. Desde o início, senti o apelo do espírito subjacente ao desenvolvimento de uma liderança em saúde para a África Oriental, abraçando os princípios das melhores práticas baseadas em evidências e o impacto regional. Isso refletiu-se na pergunta fundamental que a maioria de nós, profissionais de saúde, fazemos: Como posso desenvolver e usar as minhas competências para fazer a diferença?
Como tem sido ser a primeira mulher na sua área?
Ser a primeira cirurgiã mamária no Quénia carrega uma responsabilidade aumentada, mas estou grata por esse privilégio. Sermos os primeiros em qualquer função acarreta uma pressão adicional sobre nós para assegurarmos que não seremos os últimos. É importante orientar e apoiar mais mulheres na área da cirurgia para garantir uma força de trabalho em saúde diversificada com melhores resultados para os pacientes.
Quando fiz a minha formação, uma cirurgiã eram algo raro. Nos últimos oito anos, houve um crescimento exponencial em todas as especialidades, o que é incrível. Agora temos mais algumas cirurgiãs de mastologia e muitas mais em formação ou a desenvolverem um interesse na especialidade!
A representação é importante. Na África Subsaariana, as mulheres representam cerca de 70% do pessoal em saúde, mas com uma sub-representação significativa em certas especialidades e em posições de liderança. Por exemplo, os dados do Colégio de Cirurgiões da África Ocidental em 2015 revelaram que, dos cerca de 5000 cirurgiões registrados, menos de um por cento eram do sexo feminino.
As mulheres têm aqui um papel único a desempenhar nos cuidados de saúde, incluindo na redução de algumas das barreiras socioculturais existentes nas nossas comunidades que as mulheres têm de enfrentar na altura de aceder a cuidados de saúde. Os dados mostram que as mulheres são mais propensas a respeitar as diretrizes clínicas e a ter uma abordagem mais colaborativa ao nível da gestão em saúde, o que é importante para a formação de equipas e o envolvimento da comunidade. Se olharmos para o recente artigo na revista Nature sobre as mulheres cientistas africanas, vemos que as mulheres estão mais vocacionadas para realizar investigações que envolvam diretamente as comunidades e que tenham impacto nas suas sociedades. Não é uma questão de um género ser melhor que o outro, é uma questão da forma como reunimos as nossas competências e perspetivas coletivas para criar uma força de trabalho diversificada que ajuda a melhorar a experiência dos pacientes nos sistemas de saúde em toda a África.
Como tem sido a sua experiência enquanto mentora?
Tem sido um privilégio ser mentora. Tive mentores incríveis e, enquanto profissional de saúde, existe sempre a responsabilidade de estimular a próxima geração de profissionais de saúde. A Covid trouxe à tona medos e preocupações gerais, criando uma sensação global de incerteza e desencanto. Como podemos incentivamos a resiliência, tanto nos funcionários como no sistema?
Nove em cada 10 pessoas em todo o mundo não têm acesso a cirurgias seguras e este é certamente o caso na África Subsaariana. Como podemos equipar as mulheres com as competências necessárias para proporcionarem uma liderança transformacional nas suas esferas de influência, seja ao nível das políticas, da administração hospitalar, da chefia de equipas cirúrgicas, ou de uma clínica local? Foi por isso que ajudei a cofundar a Associação Pan-Africana de Cirurgiãs (PAWAS).
Como funciona a PAWAS na prática?
A PAWAS é uma rede continental de irmandade feminina, da Cidade do Cabo ao Cairo. Inclui cirurgiãs em várias fases da carreira e permite-nos interagir e abordar diferentes problemas. É uma plataforma educacional e temos as chamadas “quartas-feiras atrozes”, onde todas dão a sua opinião sobre casos clínicos complicados. Discutimos preocupações que são transversais a todas as vertentes dos cuidados de saúde e abordamos problemas comuns nos profissionais de saúde, como, por exemplo, lidar com um esgotamento. Essa partilha de apoio ajuda as pessoas a reconhecerem que não estão sozinhas.
Temos o prazer de ter realizado, em colaboração com a AKU, a primeira formação em cirurgia oncoplástica na África Oriental. Recentemente, ajudámos no apoio a uma preceptoria cirúrgica ministrada pela recém-formada Associação de Cirurgiões Mamários do Quénia. Recentemente, concluímos o nosso primeiro programa bem-sucedido de mentoria em investigação realizada em parceria com a AuthorAid e estamos ansiosos por realizar o próximo no final do ano.
Que conselho daria aos seus colegas novatos?
Em primeiro lugar, nada substitui o empenho no trabalho. Seja qual for o vosso objetivo na vida, dediquem tempo, adquiram as competências e envolvam-se em atividades repetidas que desenvolvam o vosso conjunto de competências.
Em segundo lugar, rodeiem-se de pessoas que partilhem uma visão comum. Arranjem um mentor, talvez até vários, cada um com um conjunto de competências diferente, que vos ajudará a alcançar o vosso objetivo.
Alguém disse uma vez que se forem a pessoa mais inteligente na sala, então estão na sala errada, porque deverão estar constantemente a querer crescer e aprender. Estejam dispostos a aprender e tenham uma humildade que vem com a valorização de coisas novas. Algumas das melhores lições que aprendi foram colegas mais jovens ou com pacientes.
Descubram a vossa paixão. Não se limitem a ficar à espera, têm de tentar várias coisas antes de encontrarem aquilo com que mais se identificam. Mas façam as coisas por interesse e não só pelo dinheiro. Se for para acordar às 3 da manhã, é melhor que estejam a fazer algo que adoram!
Para muitos você simboliza o sucesso – mas o que significa o sucesso para si?
O sucesso para mim significa acompanhar uma paciente ao longo de todo o seu percurso com o cancro, desde ser o primeiro porto de abrigo quando esta chega com um nódulo, a vê-los a realizar todas as terapias em segurança até à conclusão dos tratamentos.
Nós celebramos os pequenos triunfos ao longo do percurso, o último ciclo de quimioterapia, a cura total das feridas cirúrgicas, a última sessão de radioterapia, coisas simples como o primeiro crescimento de cabelo e deixar os lenços para trás, poder finalmente voltar a usar verniz nas unhas, a lágrimas ocasional quando o cancro nos surpreende e somos obrigados a recalibrar todo o processo, e depois redefinir o novo normal com a ajuda da equipa. É o humor partilhado em relação a uma prótese que cai durante uma apresentação importante devido a um agitar de braços demasiado entusiasta, e o facto de terem desenvolvido a resiliência para conseguir rir disso (e sim... ela fechou o negócio!).
Enquanto o primeiro médico que a paciente vê na altura do diagnóstico, temos o privilégio de lhes incutir esperança nos momentos em que estão mais vulneráveis e garantir que continuem assim ao longo dos tratamentos. É sempre gratificante quando chegamos ao fim do trajeto do cancro. É quando podemos escrever finalmente no marcador, “ciência 10 - cancro 0”. É isso que me faz continuar!