Paquistão · 19 maio 2021 · 11 Min
Salman Beg foi Presidente dos Serviços Aga Khan para a Cultura - Paquistão durante mais de 22 anos. Entrou para a AKDN em Outubro de 1998, após uma carreira diversificada que incluiu quase um quarto de século no exército e um MBA (em 1997) pela Universidade de Ciências da Gestão de Lahore (LUMS). Durante a sua gestão, o Fundo Aga Khan para a Cultura (AKTC) expandiu-se para a região do Baltistão, local onde foram levados a cabo os grandes projetos de restauro dos palácios-fortes de Shigar e Khaplu. Foram também realizados trabalhos de reabilitação em várias aldeias tradicionais. Em 2007, Salman Beg promoveu uma parceria entre o Fundo e o governo de Punjab na Cidade Murada de Lahore. Em 2012, supervisionou os trabalhos de conservação e restauro em Lahore, particularmente no Shahi Hammam e na Mesquita de Wazir Khan, e na Muralha das Figuras, na Cozinha Real e no Palácio de Verão do Forte de Lahore. Deixou o cargo em Março de 2021.
Salman Beg.
AKDN
Porque deve o Paquistão, um país com tantas carências, apostar na recuperação do património cultural?
Basicamente, os benefícios e o impacto de restaurar e dar uma reutilização ativa aos locais de património cultural superam em muito os custos decorrentes da sua conservação. Gostaria de fazer referência ao trabalho do Fundo Aga Khan para a Cultura (AKTC) nos fortes de Baltit, Shigar, Altit e do Palácio de Khaplu, cujos trabalhos de conservação tiveram um custo de cerca de 7 milhões de dólares. Em 2019 (antes da COVID-19), geraram 1,5 milhões de dólares em receitas (anuais) com um excedente de 300 000 dólares que foi reinvestido nos bairros locais. Resultou na criação de mais de 150 empregos diretos e muito mais empregos indiretos. Para além disso, o retorno do investimento ao nível do pluralismo, identidade, autoconfiança, valorização da cultura e bem-estar é incalculável.
A experiência do AKTC deixa absolutamente claro que os investimentos no património cultural pagam-se a si mesmos várias vezes. Deste modo, a verdadeira questão não é se o Paquistão precisa de dar prioridade ao desenvolvimento do património cultural, mas sim de que forma é que pode aumentar esta capacidade para alargar este trabalho a todo o Paquistão. Como disse Sua Alteza o Aga Khan, nós precisamos de “potenciar o poder transformador único da cultura para melhorar as condições socioeconómicas predominantes em muitas populações muçulmanas - comunidades que frequentemente têm um rico património cultural, mas que vivem na pobreza.”
Neste sentido, a “pobreza” não é apenas uma questão de economia. O restauro e a reutilização adaptativa de monumentos históricos podem fixar as comunidades e ajudá-las a estimular o desenvolvimento no geral. Também pode “promover uma boa administração, o crescimento da sociedade civil, o aumento dos rendimentos e das oportunidades económicas, um maior respeito pelos direitos humanos e uma melhor gestão do ambiente” - para citar novamente Sua Alteza o Aga Khan.
Numa entrevista com Paul Chutkow em Setembro de 1983, Sua Alteza o Aga Khan falou da importância da identidade cultural. Quais serão as consequências... quando o património cultural estiver perdido?”, perguntou. Na sua opinião, quais são as consequências para o Paquistão da perda do seu património cultural, seja por negligência, catástrofes ou crises?
Pode não ser do conhecimento geral, mas o Paquistão é o berço de várias culturas, remontando aos primeiros assentamentos humanos conhecidos, como Mergar (7000 a.C.). Temos também a civilização do Vale do Indo (Harapa e Moenjodaro), a civilização de Gandara e, no século XVII, os Mogóis no seu apogeu. Existia inclusive um segmento da famosa Rota da Seda que passava por esta região. Estas culturas são dádivas ao património da humanidade.
Assim, a perda do património cultural no Paquistão seria como perder ao mesmo tempo uma parte do património mundial e da história do país. Se perdermos o conhecimento de como o Paquistão foi colonizado desde os primórdios da história - e a confiança que isso inspira - perdemos algo que é intrínseco ao nosso ser. O orgulho é importante. Perdermos a nossa história é uma catástrofe. É como um homem no escuro. Não existem sinais reconfortantes dos seus antepassados.
Ao tornarmos tudo homogéneo, adotamos a cultura dominante da época. Para o Paquistão, é fundamental reconhecer, celebrar e garantir que esta diversidade é fortalecida e divulgada. Caso contrário, existe atualmente um perigo evidente de os corações e as mentes das populações poderem vir a ser controlados por ideologias radicais. Percebemos que o Paquistão - ao contrário desta pluralidade de pensamentos, povos, culturas e influências que orgulhosamente herdámos - tem sido mal interpretado ao longo dos tempos.
É capaz de apontar o seu primeiro grande trabalho de restauro? Lembra-se desse período e dos objetivos que o AKTC desejava alcançar?
Na altura em que entrei, em Outubro de 1998, havia um debate em curso sobre o que fazer a seguir, tanto em relação às regiões onde devíamos atuar como ao processo a ser seguido. A extensão do modelo sustentável integrado de desenvolvimento de área - com o Forte de Baltit como ponto de referência - foi aprovado como uma forma prática de mitigar o desenvolvimento descontrolado e combater a pobreza. Escolhemos o Baltistão (para além de Hunza), a pedido de várias personalidades da região que haviam solicitado o envolvimento de Sua Alteza o Aga Khan.
O AKTC - com o apoio da Embaixada Real da Noruega em Islamabad - começou a fazer um estudo para o desenvolvimento socioeconómico do Baltistão tendo por base o seu património cultural. Este estudo - que se estendeu por dois anos - revelou que o Baltistão é um verdadeiro tesouro em matéria de património cultural de importância regional e internacional. Para além disso, as autoridades locais expressaram o seu total apoio a uma estrutura de desenvolvimento que não procurasse apenas salvaguardar o seu património, mas que fizesse dele um meio viável para o desenvolvimento socioeconómico.
O nosso objetivo não passava por restaurar fortes e construir museus. Queríamos perceber de que forma é que os recursos do património cultural poderiam funcionar como um trampolim para uma melhoria na vida das populações em zonas pobres ou remotas. Os princípios que seguimos foram: (1) os trabalhos de conservação baseados nas comunidades podem oferecer benefícios concretos ao dar uma nova vida a edifícios emblemáticos; (2) os edifícios restaurados podem ser economicamente sustentáveis através de uma reutilização adaptativa; e (3), o mais importante, os edifícios restaurados podem funcionar como um núcleo para uma revitalização mais abrangente da área em que se inserem.
Assim que estes princípios foram postos em prática, assumimos dois projetos integrados: Shigar (1999-2010) e Altit (2000-2010). O foco foi a melhoria da qualidade de vida das comunidades que vivem nos aglomerados habitacionais limítrofes aos fortes. Em ambos os casos, o primeiro passo foi a formação de instituições locais conhecidas como Sociedades de Gestão Municipal (SGM), que foram envolvidas nas obras e em outras atividades.
O restauro do Forte de Shigar (1999-2004) foi acompanhado por uma forte reabilitação e modernização dos aglomerados habitacionais, incluindo a construção de uma fonte de abastecimento de água potável, obras de melhoria ao nível do saneamento e uma melhoria dos espaços e instalações comunitárias. Destes espaços fizeram parte reservatórios de água/piscinas, espaços de reunião e eletrificação subterrânea. Também formámos pessoas para o desenvolvimento de competências e para a utilização de materiais locais. Estas medidas não só criaram emprego na região como ajudaram a recuperar importantes técnicas de construção tradicionais - que estão hoje em dia a ser replicadas pelas populações na reabilitação das suas próprias casas. O impacto da recuperação do Forte de Shigar tem vindo a fomentar uma consciencialização acerca das técnicas de construção tradicionais, do uso sustentável de madeiras verdes como o álamo ou a nogueira, e recuperou técnicas tradicionais como a carpintaria e a escultura em madeira.
No caso de Altit, a SGM de Altit foi fundamental para evitar que a antiga aldeia fosse abandonada em favor de uma construção moderna dispersa e desadequada nos preciosos campos e pomares escalonados em redor da aldeia. Retirar o gado das casas, pavimentar as ruas e fornecer saneamento adequado a todas as habitações foi um esforço coletivo de reabilitação que envolveu diretamente a comunidade local tanto ao nível dos processos de conceção e como de trabalhos manuais.
Por fim, estes dois projetos em Shigar e Altit tornaram-se a prova viva de como as antigas tradições culturais e os recursos técnicos modernos não têm de ser incompatíveis.
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O AKTC prosseguiu com o restauro de outros monumentos de menor dimensão, como mesquitas e khanqahs, para além de assentamentos, como Ganish e a mesquita de Amburiq - num total de mais de 150 intervenções. Qual era o vosso objetivo?
Procurámos potencializar estes recursos - que muitas vezes eram os únicos recursos que as populações pobres tinham à sua disposição - e usar a conservação como um meio de criar emprego, melhorar os sistemas de água e saneamento e melhorar a qualidade de vida. Não nos limitámos a restaurar antigas mesquitas, mas procedemos também à reabilitação de aglomerados habitacionais, incluindo melhorias nos sistemas de água e saneamento. O nosso foco estava na criação de uma diferença efetiva através de uma abordagem centrada na comunidade.
Uma vez que os recursos ao nível do património cultural não se limitam a fortes e palácios, - e mesmo esses são, em todo caso, poucos - a necessidade de difundir o conhecimento e estimular a reflexão acerca do papel dos recursos patrimoniais levou-nos a colaborar com as comunidades num grande número de zonas das regiões de Hunza e Baltistão. A Mesquita de Amburiq do século XV foi restaurada para demonstrar a viabilidade da conservação de monumentos gravemente danificados. Amburiq, a primeira mesquita construída no Baltistão, recebeu uma Menção Honrosa nos Prémios da UNESCO Ásia-Pacífico para a Conservação do Património Cultural em 2005. O edifício e o seu pátio voltaram a ter uma utilização moderna enquanto museu comunitário, dando uma nova vida a uma das estruturas histórica e socialmente mais significativas da região.
Restauramos igualmente a Mesquita de Khilingrong. As obras de conservação não só recuperaram a função religiosa do edifício como revitalizaram um espaço público importante para iniciativas sociais quotidianas entre a comunidade. É importante restaurar os locais de reunião. Muitas comunidades pobres não têm onde se reunir, o que é um pré-requisito para o desenvolvimento - as pessoas encontrarem-se e procurarem desenvolver em conjunto a sua região.
O AKTC restaurou alguns fortes, como o de Shigar e Khaplu, tendo-os posteriormente transformado em hotéis. Qual a importância de transformar estes fortes em projetos comerciais? Porque não transformar os fortes em museus, como em Baltit?
Tentámos criar motores de desenvolvimento através do reaproveitamento de fortes e palácios. Em comparação com Hunza, que já tinha uma tradição de turismo, o Baltistão sempre foi mais um destino de caminhadas e aventura. A intenção era que estes fortes restaurados se tornassem sustentáveis, transformando-os para isso em hotéis históricos - que foi o que aconteceu. Hoje em dia, os fortes de Shigar e Khaplu são geridos pelo grupo Hotéis Serena. Em matéria de receitas, 20 por cento do excedente é atribuído às SGM de Shigar e Khaplu e 10 por cento à Fundação Regional de Cultura e Desenvolvimento do Baltistão.
A ideia passa por uma melhoria contínua da qualidade de vida e de implementar um mecanismo duradouro de desenvolvimento económico.
Porque é que o AKTC começou a restaurar a Cidade Murada de Lahore? Em que medida é que esta obra de restauro foi particularmente importante para o património cultural do Paquistão?
Lahore é a capital cultural do Paquistão e uma das cidades historicamente mais fascinantes do mundo. Tem mantido grande parte do seu património histórico, apesar de séculos de turbulência. Hoje em dia, continua a ser um vibrante epicentro de atividades comerciais e culturais.
Em 2005, o governo do Paquistão solicitou que o AKTC desse o seu contributo técnico ao projeto-piloto financiado pelo Banco Mundial de desenvolvimento da área de Shahi Guzargah, na Cidade Murada de Lahore. Os trabalhos foram iniciados no âmbito de um acordo-quadro de parceria público-privada com o Governo do Punjab, assinado em 2007.
Este envolvimento levou à colaboração em vários projetos em curso, que incluem importantes monumentos do período mogol, como o balneário público do século XVII conhecido como Shahi Hammam, assim como Chowk Wazir Khan e a conservação da Mesquita de Wazir Khan. Desde 2015 que o AKTC tem vindo a trabalhar no Forte de Lahore, Património Mundial, que inclui 21 monumentos importantes, entre os quais a famosa Muralha das Figuras e as Cozinhas Reais. O AKTC também prestou assistência ao Governo de Punjab na preparação de um Plano Diretor de Conservação e Redesenvolvimento para a Cidade Murada de Lahore e também para o Forte de Lahore.
O facto de o Governo de Punjab estar a investir fundos substanciais na Muralha das Figuras, no Palácio de verão, nas Cozinhas Reais e na Mesquita de Wazir Khan é a prova da viabilidade e da importância do restauro do património cultural.
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O vosso trabalho já vos valeu 14 prémios da UNESCO. Porque é que estes são importantes?
Vencemos prémios da UNESCO todos os anos desde 2002. Isto é algo sem igual na história da UNESCO na Ásia-Pacífico. Dois prémios de Excelência, sete de Distinção e três de Mérito revelam bem a espantosa qualidade do trabalho e o mérito da abordagem baseada na comunidade que foi adotada pelo AKTC.
É de particular significado o facto de um projeto comunitário - a Astana de Syed Mir Yahya, em Shigar - ter recebido um Menção Honrosa em 2007. O louvor da UNESCO diz:
“O restauro da Astana de Syed Mir Yahya por parte da comunidade de Shigar, em Skardu, no Paquistão, recuperou um importante símbolo religioso local à beira da ruína de uma forma modesta e culturalmente apropriada. Através do envolvimento ativo dos moradores locais e tendo por base outros excelentes modelos de conservação liderados pelas comunidades que foram levados a cabo no norte do Paquistão, este projeto tornou-se ele próprio um exemplo notável de uma iniciativa local de restauro bem-sucedida. Através dos esforços voluntários dos moradores e do uso de técnicas de construção tradicionais para realinhar e estabilizar a estrutura, o túmulo recuperou a sua antiga condição de símbolo cultural central da aldeia.”
Importa referir que em Novembro de 2019, no evento de comemoração dos 20 anos dos prémios da UNESCO, em Penang, na Malásia, o AKTC recebeu um prémio especial pelo extraordinário trabalho na área da conservação baseada na comunidade. Para além disso, os projetos premiados do Fundo foram incluídos nos três volumes da coleção 'Asia Conserved' impressos até agora pela UNESCO.
Não foi apenas a UNESCO que reconheceu a abordagem de trabalho posta em prática pelo AKTC. A associação do sector das viagens Pacific Asia Travel Association (PATA) concedeu o Grande Prémio de 1997 ao Forte de Baltit e o Prémio de Ouro de 2006 ao Forte de Shigar. O Prémio “Turismo de Amanhã” da British Airways de de 2000 foi concedido ao Projeto Ambiental do Forte de Baltit e Karimabad. A este seguiu-se o prémio de 2008 da Virgin Holidays de “Melhor em Conservação do Património Cultural” pelo restauro e reutilização do Palácio do Forte de Shigar, e ainda o Prémio Altamente Recomendado de 2012 de “Melhor em Redução da Pobreza” para o Palácio & Residência de Khaplu. Antes disso, O Forte de Baltit, no Vale de Hunza, surgiu na capa e na edição de 4 de julho de 2005 da revista Time Magazine Best of Asia.
Qual foi o seu projeto de restauro favorito?
A diversidade das nossas intervenções e a variedade dos compromissos estabelecidos torna difícil destacar um projeto, mas o meu projeto favorito é claramente o Shahi Hammam, na Cidade Murada de Lahore.
Este projeto foi pioneiro a vários níveis. Foi o primeiro projeto de conservação de um monumento em Lahore levado a cabo pelo Fundo. Foi a primeira vez que a WCLA solicitou ao AKTC a conservação do Shahi Hammam. Foi a primeira vez que a Noruega se disponibilizou a apoiar um projeto de conservação fora de Gilgit-Baltistão.
A conservação do Shahi Hammam foi o gatilho para todos os futuros compromissos de conservação em Lahore, tendo envolvido e influenciado parceiros como a Noruega, EUA, Alemanha, Governo de Punjab/WCLA e a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) no apoio aos trabalhos de conservação em Lahore.
Os principais objetivos dos esforços de conservação passaram por voltar a fazer do monumento um balneário, através da exposição, conservação e exibição dos vestígios do sistema original de distribuição de água, drenagem e hipocausto através de escavações arqueológicas, consolidação estrutural e restauro dos antigos níveis do solo.
O Hammam foi agora transformado num museu do património que acolhe turistas e visitantes de todo o mundo na Cidade Murada, e vai-se mantendo vivo como local de palestras, seminários e eventos culturais e corporativos. Desde a sua inauguração em Junho de 2015, o Hammam tem vindo a tornar-se cada vez mais a peça central do turismo na Cidade Murada, juntamente com o Forte de Lahore, Património Mundial da UNESCO.