Reino Unido · 7 março 2021 · 6 Min
Por Matt Reed, Diretor Global para as Parcerias Institucionais da Fundação Aga Khan (AKF) e Presidente da AKF (Reino Unido)
No mês passado, discursei no lançamento do Prémio para a Coesão Social do Banco de Desenvolvimento do Conselho da Europa. O prémio distingue organizações e projetos de excelência que contribuam para a coesão social na Europa.
O tema não poderia ser mais pertinente, tendo em conta os acontecimentos ao longo de 2020 - do auge da polarização nas redes sociais, à indignação compreensível perante a violência policial e o racismo institucional, ao aumento das teorias da conspiração, da violência e da xenofobia que culminaram nos ataques ao Capitólio dos EUA. Cada um destes eventos revelam sociedades que têm dificuldades em ser coesas - em aceitar e acolher as diferenças como uma força e não como uma fraqueza. Pelo menos é o que parece, se olharmos para as tendências e as histerias do Twitter.
Mas esta visão sombria - ainda que real - está longe de contar toda a história. Quando olho para o mundo e faço um balanço do ano passado, vejo muitos exemplos extraordinários de pessoas que se uniram nesta pandemia para se ajudarem umas às outras e a toda a humanidade. Estes exemplos de solidariedade e soluções desmentem a visão pessimista de uma política polarizada, incapaz de ser pragmática e de praticar ações concretas.
As empresas sociais lideradas por mulheres na Índia, apoiadas pelo Programa Aga Khan de Apoio Rural e pelos seus parceiros, começaram a fazer máscaras quase imediatamente - em muitos casos de forma gratuita - para proteger as suas comunidades.
AKDN
Apesar da ameaça real de uma visão nacionalista em relação às vacinas e dos casos em que os países deram primazia à sua autopreservação em detrimento da cooperação global, durante o ano passado assistimos também a muitos casos incríveis de cooperação, coordenação e abnegação a nível internacional. À medida que entramos no segundo ano desta pandemia, seria positivo recordamos e inspirarmo-nos nestes exemplos.
Em Londres, fiquei impressionado, ao longo deste ano, com a quantidade de pessoas que prestaram auxílio a vizinhos que mal conheciam - os idosos, os enfermos, os mais resguardados e confinados. Uma das trágicas ironias de uma pandemia é que os próprios instintos de solidariedade que nós normalmente celebramos são na verdade perigosos. Mas, para muitos, o desejo de ajudar os nossos vizinhos (em segurança) transcendeu estas restrições em 2020.
No Reino Unido, observámos milhões de pessoas a aplaudir os profissionais de saúde, e milhares com muita vontade de se associarem e contribuírem. De forma muito rápida, surgiu em todo o país vários tipos de projetos de voluntariado - desde crianças em idade escolar a manterem-se em forma com Joe Wicks e a sua educação física virtual, até restaurantes e empregados de hotelaria a criarem cozinhas voluntárias para providenciar refeições aos funcionários do Serviço Nacional de Saúde ou outras pessoas em situação vulnerável. No nosso bairro, rapidamente começaram a aparecer panfletos em todas as caixas de correio a oferecerem ajuda com compras e entregas.
Em nossa casa, a minha esposa entrou logo em contacto com a vizinha de 92 anos com quem mal tínhamos conversado antes e ofereceu-se para ajudá-la com as compras. Depois de quase um ano a falarmos com ela todos os fins de semana - e do prazer de bebermos um refresco, com distância social, no seu jardim da frente durante a breve pausa no confinamento no último verão - tornámo-nos amigos. Porque demorámos tanto tempo e porque foi preciso acontecer uma pandemia para tantos de nós passarmos a conhecer os nossos vizinhos? Independentemente da demora, os laços na nossa zona saíram reforçados e creio que isso demonstra algo fundamental acerca de nós, apesar do desgastado tecido social que também podemos testemunhar.
No ano passado, a minha função na Fundação Aga Khan (AKF) fez-me desenvolver um grande apreço pelas contribuições fundamentais que as organizações comunitárias e as organizações sem fins lucrativos fizeram durante esta pandemia. E isso convenceu-me ainda mais da importância substancial do apoio de longo prazo da AKF à sociedade civil na Ásia e em África.
Todos os anos, a AKF trabalha com mais de 60 000 organizações comunitárias de todos os tipos - desde grupos de poupança de mulheres a cooperativas de agricultores e a ONG locais. Com o apoio da forte estrutura de organizações já existentes, de uma vasta base de capital social e uma longa experiência de trabalho conjunto, estes grupos foram capazes de iniciar a sua atividade quase de imediato no ano passado, de modo a ajudar a sustentar as suas famílias e a manter as comunidades seguras e saudáveis. Em muitos aspetos, estavam mais preparados do que eu e os meus vizinhos estávamos em Londres - e muito mais práticos.
Estas organizações trabalham há anos nas suas comunidades, muitas vezes já há décadas. Muitas delas já haviam sido preparadas pela AKF e pela Agência Aga Khan para o Habitat para dar resposta a emergências locais e desastres naturais. Assim que os nossos colegas dos Hospitais Aga Khan e da Universidade Aga Khan foram capazes de confirmar os protocolos adequados, passámos a poder trabalhar com a administração destas organizações comunitárias para aumentar a consciencialização acerca do vírus em zonas remotas da Ásia Central e do Sul, da África Oriental, da Síria e do Egipto.
Dado o facto de estarem presentes nestas comunidades há anos e de serem formados por pessoas locais que inspiram muita confiança, estes grupos funcionam com um poderoso antídoto contra as notícias falsas e as teorias da conspiração que se espalham por outros lugares, deixando um rasto de pânico. Em alguns lugares, têm literalmente salvado vidas através do combate à desinformação e à estigmatização de minorias marginalizadas que por vezes acompanham esse pânico.
Através de colaborações com outros membros da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, incluindo o Nation Media Group e o Habib Bank, estas medidas chegaram a mais de 9 milhões de pessoas com informações importantes sobre saúde e higiene, ajudando as populações a ficar em segurança. Estas iniciativas ajudaram a vincular cerca de 7 milhões de pessoas a serviços de proteção social, como assistência pecuniária e distribuição de alimentos. Trabalharam também com professores e escolas de 10 países para ajudar mais de 135 000 crianças a continuar a estudar durante o encerramento das salas de aulas. O alcance destas atividades foi extraordinário - mas não é, de forma alguma, um caso isolado. As suas histórias não são muito conhecidas, mas existem milhares de outras organizações sem fins lucrativos que se chegaram à frente durante esta pandemia para providenciar ajuda e assistência indispensáveis. É este o poder - e o potencial duradouro - da sociedade civil.
A nível global, também temos exemplos poderosos de cooperação e solidariedade internacional. A velocidade com que a comunidade científica, a indústria farmacêutica e vários governos têm conseguido reagir e cooperar tem sido surpreendente. Poucas semanas depois de identificar o novo coronavírus, os cientistas em colaboração em todo o mundo conseguiram descodificar o seu genoma e identificar a nova variante com precisão.
Os virologistas, epidemiologistas, médicos, cientistas comportamentais e produtores de medicamentos foram capazes de desenvolver rapidamente protocolos e kits de testagem, uma capacidade de diagnóstico e planeamento, e previsões para ajudar a orientar os decisores políticos durante os primeiros tempos da doença. Os governos colocaram em prática instrumentos de política que tinham sido testados noutras situações, como os Compromissos de Comercialização a Prazo e a assistência financeira direta a laboratórios universitários e empresas farmacêuticas. Em poucos meses, havia mais de uma dúzia de vacinas em desenvolvimento. Menos de um ano depois, existiam já várias vacinas que se tinham revelado eficazes e seguras - o desenvolvimento de uma vacina mais rápido da história, com vários anos de distância.
Esta proeza de cooperação científica, industrial e política é inaudita. O facto de ter acontecido de forma tão rápida e pacífica talvez tenha impedido que muitos de nós compreendêssemos a total dimensão desta conquista. É algo verdadeiramente histórico - mas este sucesso não surgiu do nada. Este baseia-se também no apoio de longo prazo à preparação para epidemias por parte de organizações como a Coalition for Epidemic Preparedness Innovations (CEPI) [Aliança para as Inovações em Preparação para Epidemias], que foi fundada em conjunto pelos governos da Noruega e da Índia, a Fundação Gates, o Wellcome Trust e o Fórum Económico Mundial.
Cada um destes exemplos demonstra o poder da intervenção comunitária e da cooperação internacional. Eles fazem-nos recordar como é fundamental trabalhar arduamente para a construção da coesão social. Mas isso é algo que não pode ser alcançado a pedido nem da noite para o dia. Isto requer um desenvolvimento paciente e de longo prazo durante anos e ao longo de gerações. É por isso que a Fundação Aga Khan tem feito do apoio à sociedade civil a pedra basilar do seu trabalho durante meio século - e continuará a fazê-lo.
Como se tem assistido ao longo da última década - e com ainda mais força após esta pandemia - em alturas de pressão económica, existe muitas vezes a tentação de cortar nos programas sociais, nas instituições sociais - escolas, hospitais, organizações sem fins lucrativos - que sustentam as nossas comunidades. Mas se esta pandemia nos ensinou algo foi que, embora a degradação destes pilares possa parecer economicamente viável, a resiliência a longo prazo das nossas sociedades depende da existência destas redes de proteção social, destes mecanismos de solidariedade, destas instituições de pluralismo.
Esta é uma lição que todos devemos levar em conta, numa altura em que começamos a pensar no futuro e no que será necessário para sairmos mais fortes desta pandemia.
Este texto foi adaptado de um artigo publicado no site da AKF (Reino Unido).