India · 14 maio 2020 · 8 Min
Afroj Alam trabalha em conjunto com a Fundação Aga Khan (AKF) e os agricultores de Bihar para melhorar a qualidade das culturas de leguminosas e aumentar os rendimentos dos agricultores. Nesta entrevista, ele explica como é que esta iniciativa foi interrompida pela pandemia e como é que ele e os seus parceiros se estão a adaptar para apoiar os agricultores da região.
Quando é que ouvi falar da COVID-19 pela primeira vez? Que pensou ou sentiu nessa altura?
Ouvi falar pela primeira vez sobre a COVID-19 por altura das celebrações do Holi na aldeia. Foi quando os canais de notícias começaram a acompanhar exaustivamente o vírus. Inicialmente, não fiquei muito preocupado com isso, porque não havia casos positivos na nossa região, mas o meu irmão mais velho, que trabalha como trabalhador qualificado nas Ilhas Maurícias, ligou-me para falar sobre o vírus e pediu-me para tomar precauções. Mesmo assim não imaginava que viesse a tornar-se um problema tão grave e que as coisas iriam mudar tanto por causa disso.
Em 21 de Março, o meu escritório convocou uma reunião acerca da COVID-19. Todas as pessoas do meu escritório foram solicitadas a interromper todos os trabalhos oficiais e de campo e a ficarem em casa. Ficámos todos muito chocados quando recebemos estas informações, pois nunca tínhamos passado por uma situação tão trágica antes. Embora eu trabalhe principalmente no Projeto de Leguminosas, também temos trabalhado intensamente durante desastres, como cheias graves, terramotos ou incêndios, e eu pessoalmente já realizei trabalhos de socorro durante as cheias em Bihar no passado. Estamos habituados a trabalhar em emergências, mas desta vez fomos alertados para ficar em casa e tomar medidas de segurança. Isto levou-me a mudar toda a minha mentalidade e rotinas, pois não estava habituado a ficar em casa.
Inicialmente, fiquei assustado, mas como tenho um espírito de assistente social, estava sempre a pensar na nossa comunidade, especialmente aquelas pessoas que pertencem a famílias marginalizadas e excluídas, ou famílias em que a sua maioria é analfabeta. Dado que Março é a época da colheita das culturas de trigo e lentilhas, comecei a pensar numa forma de colocar os produtos no mercado, dada a situação de confinamento. Se as colheitas não conseguirem chegar ao mercado, os meios de subsistência dos agricultores ficarão comprometidos, não apenas agora, mas também na próxima estação, pois precisam de dinheiro para investir em sementes para o ano seguinte.
Seeds and fertiliser supply chains have been disrupted by the pandemic.
AKDN
Enquanto filho de um pequeno agricultor, conheço bem os problemas que estes agricultores estão a enfrentar. A agricultura não conhece barreiras de tempo - assim que um campo está pronto para a colheita, essa colheita tem de ser feita, e depois disso o produto tem de chegar aos mercados, caso contrário, haverá problemas de armazenamento ou desperdício. Decidi ajudar os agricultores a todo custo. Quis fazer algo para poder apoiá-los.
Em que medida é que a COVID-19 teve impacto em si e na sua comunidade?
Toda a gente na aldeia está muito assustada. Devido ao distanciamento social e às rígidas normas governamentais, a comunicação com os agricultores tornou-se bastante difícil. A comunicação presencial parou praticamente por completo. Estamos a seguir à risca as recomendações para manter as nossas famílias e comunidade em segurança.
Tem existido patrulhamento policial na minha aldeia, assim como em outras aldeias vizinhas. Há um sentimento de medo aqui devido à pandemia. Fui pai recentemente e tenho uma recém-nascida em casa. Como as crianças pequenas são vulneráveis, em nossa casa tomamos todas as medidas preventivas e cuidados especiais. Às vezes, saio para trabalhar e, quando volto, sinto medo de tocar na minha filha recém-nascida. A minha família também me aconselhou a não lhe tocar nem a brincar com ela, especialmente depois de ter vindo da rua.
Algumas pessoas que voltaram das cidades foram imediatamente enviadas para centros de quarentena durante catorze dias. Não foram autorizadas a entrar diretamente na aldeia assim que regressaram. Em vez disso, tiveram de ficar a viver num escola nos arredores da aldeia, a qual estava a funcionar como um centro de quarentena. Só depois de terem ficado lá durante duas semanas sem apresentar sintomas é que puderam entrar na aldeia. Muitas famílias das aldeias dependem dos salários de membros que migraram para as grandes cidades, e agora estão com dificuldades porque as pessoas não podem trabalhar. Devido a esta paralisação geral, algumas pessoas não receberam os salários dos últimos dois meses. Nos casos em que o marido vive na cidade, este vê-se obrigado a gastar as suas economias para subsistir e não consegue enviar dinheiro para a sua família.
Os assalariados sazonais e diários também ficaram sem trabalho, o que torna as suas famílias vulneráveis. Só os veículos autorizados têm permissão para circular, o que leva a que todas as pessoas que dependem de empresas relacionadas com os transportes estejam sem trabalho. Em muitos casos, os vegetais cultivados pelos agricultores não são consumidos e apodrecem devido à falta de meios de transporte. Os agricultores não conseguem colocar os seus produtos no mercado. Os produtos perecíveis, como o leite e lacticínios, ou os vegetais, não têm clientes suficientes ao nível das aldeias - muitos destes produtos são deitados fora nas bermas das estradas, pois os agricultores não têm câmaras frigoríficas para os guardar.
Para piorar a situação, muitos agricultores não conseguem colher as suas culturas, uma vez que os trabalhadores agrícolas habituais estão impedidos de ir para os campos. Todas as atividades ficaram paralisadas por causa do vírus. Devido a esta escassez de mão-de-obra nas aldeias, a colheita de lentilhas não pôde ser debulhada na altura devida, na primeira semana de Abril. A juntar a isto, no início de Abril ocorreram chuvas fortes com tempestades de granizo, o que levou a danos significativos na produção de trigo na aldeia.
Como é que está a contribuir para a luta contra esta pandemia? Porque decidiu tomar a iniciativa?
Eu tenho trabalhado intensamente para aumentar a consciencialização acerca da COVID-19 na comunidade e garantir que todos os moradores tomam as precauções necessárias. Eu e alguns dos meus colegas distribuímos faixas e cartazes pelas nossas aldeias que ilustravam as medidas de segurança que as pessoas têm de seguir. Também as comunicámos aos agricultores a que estamos associados, através de SMS para os seus telemóveis, as quais são enviadas aos agricultores em intervalos regulares ou quando existem atualizações.
Os agricultores são constantemente aconselhados a manter o distanciamento social e a usar máscaras quando estão nos campos. Eles também estão a ser aconselhados a lavar as mãos com sabão e a lavar e desinfetar todas as suas ferramentas quando regressarem a casa dos campos, para garantir a proteção de outros membros da família. Foram igualmente oferecidas duas máscaras e sabonetes a todos os agricultores associados ao Projeto de Leguminosas nos blocos de Nautan e Bairiya, tendo sido deixados à porta de suas casas para respeitar as medidas de distanciamento social.
Nos casos em que o agricultor possui produtos perecíveis, estamos a tentar-nos organizar com eles por telefone para arranjar veículos que levem os produtos para o mercado mais próximo, para que não sejam desperdiçados. Para os agricultores que já colheram as suas lentilhas, estamos a informá-los diariamente acerca do preço de mercado para que eles possam fazer a sua escolha e vendê-las na altura mais adequada.
Alguns intermediários locais estão a tentar explorar os agricultores comprando os seus produtos a um preço muito baixo, e alguns vendedores de sementes também aumentaram os seus preços para se aproveitarem desta oportunidade. Para combater isto, iniciámos uma iniciativa de comprar as colheitas de lentilha aos agricultores por um bom preço, o qual comunicámos a todos os agricultores associados. Se não forem capazes de vendê-las através dos seus canais habituais, podem vir até nós para comprar estes produtos sem serem forçados a vender por um preço injusto. Também estamos a disponibilizar sacos Super Grain para armazenarem as suas lentilhas em segurança para futuras vendas.
Até ao momento, já comprámos três toneladas de lentilhas aos nossos agricultores através desta iniciativa. Esta medida revelou-se muito útil para os agricultores da aldeia. Também estou a contactar grandes compradores para adquirirem as colheitas de trigo e a pô-los em contacto com os agricultores, resultando na obtenção de um preço justo por parte dos agricultores. Os nossos agricultores estão muito felizes por ainda conseguirem ter boas oportunidades nesta fase tão angustiante.
Enquanto membro da comunidade, sinto que tenho alguma obrigação em melhorar a nossa sociedade. Se a comunidade se sentir feliz e próspera, eu também fico feliz e satisfeito. Já trabalho na aldeia há algum tempo e, com todo o amor e respeito que os moradores me têm conferido no passado, sinto que é a altura certa para retribuir e fazer tudo o que puder por eles. Tenho estado em contacto com os nossos agricultores nos últimos quatro anos e também tenho boas relações com os familiares dos agricultores. Estou muito contente por alargar a minha ajuda até onde quer que eles precisem numa altura tão complicada como esta.
Tem algum objeto que utilize todos os dias que o ajude na luta contra a COVID-19? Porque ou em que medida é que isso o ajuda?
A mota e o telemóvel providenciados pelo nosso projeto têm-me ajudado a cobrir grande parte do meu trabalho. Nesta altura, o meu telemóvel é fundamental, uma vez que a comunicação presencial está interrompida. No momento, a sementeira das culturas de Zaid e a colheita da cultura de Rabi deverão estar em pleno andamento, pelo que os agricultores precisam dos nossos serviços para a venda e compra de produtos e sementes. O meu telemóvel ajuda-me a estar coordenado com os vendedores do mercado e com os agricultores. Desta forma, consigo arranjar boas sementes para os agricultores plantarem na próxima estação e também vender as suas colheitas atuais. Quando saí para colocar as faixas e cartazes na aldeia, a minha mota revelou-se muito útil, uma vez que de momento não existem transportes operacionais nas aldeias.
Que gostaria de dizer ao resto do mundo acerca deste desafio global que todos estamos a enfrentar em conjunto?
Gostaria de dizer que não é preciso ter medo nem entrar em pânico. Sejam solidários, ajudem todas as pessoas e ofereçam comida e outros itens essenciais aos mais desfavorecidos e necessitados. Sigam as regras e medidas de segurança anunciadas periodicamente pelo vosso governo.
Mais algum pormenor ou comentário que deseje partilhar?
Para além da campanha de consciencialização e da venda e compra de sementes e produtos, também estou a tentar ajudar as famílias mais carenciadas que, por algum motivo, não têm cartões de racionamento. Identifiquei e ajudei na solicitação de cartões temporários de racionamento para aproximadamente 287 famílias bastante carenciadas. Também entrei em contacto com as autoridades locais para informá-las acerca da situação atual das pessoas em maiores dificuldades na aldeia. No seguimento disto, os bens alimentares recebidos através de um fundo local foram distribuídos por essas famílias muito carenciadas por mim identificadas.
Acima de tudo, estou a dar o meu melhor para conseguir transmitir todas as informações que recebo das autoridades às pessoas da aldeia. Quem quer que seja que esteja disposto a fazer um donativo ou a contribuir para ajudar a nossa comunidade está receber uma orientação adequada e a receber informações corretas acerca da situação atual das famílias das comunidades marginalizadas, para que se possam chegar à frente e ajudar aqueles que estão a precisar urgentemente de apoio.