Malásia · 26 setembro 2022 · 12 Min
Conhecida como um paraíso gastronómico regional e com uma vida urbana vibrante e multicultural, a antiga cidade histórica de Penang, local Património Mundial da UNESCO, assistiu em Maio de 2022 à inauguração do seu recém-restaurado quebra-mar e paredão público. Estas grandes obras públicas, que fazem parte de um plano de revitalização da região, resultaram de uma parceria estratégica entre o Estado de Penang, a Câmara Municipal da Ilha de Penang, a Think City e o Fundo Aga Khan para a Cultura (AKTC).
As visitas ao Sudeste Asiático por parte de Sua Alteza o Aga Khan e membros da sua família remontam ao início do século XX. A visita de Sua Alteza às Filipinas em 1963 criou um marco importante que foi inspirador para a emergente atividade educacional e intelectual entre as populações muçulmanas na região. As agências da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN) têm vindo a trabalhar na região desde a década de 1980, incluindo colaborações nas áreas da educação e do desenvolvimento social urbano, promovendo diálogos, conferências de alto nível, assim como intercâmbios, visitas de estudo e workshops. O Prémio Aga Khan para a Arquitetura realizou-se na Indonésia em 1995 e na Malásia em 2007; a exposição do Museu Aga Khan “Arquitetura na Arte Islâmica” visitou Kuala Lumpur e Singapura em 2012. Ao abrigo de um Memorando de Entendimento assinado em 2013, o AKTC e a Think City começaram a prestar assistência técnica para a proteção, desenvolvimento e valorização da histórica George Town de Penang.
Com as atenções viradas para Penang, Hamdan Majeed, Diretor Geral da Think City, e Francesco Siravo, arquiteto do AKTC, discutem o seu trabalho em George Town, o equilíbrio entre a tradição e a modernidade no restauro de zonas históricas, a forma como o desenvolvimento pode ser sensível a nível ambiental, e os benefícios em geral da melhoria dos espaços públicos.
Porque é importante investir em espaços públicos?
Hamdan: Uma das consequências inesperadas da recente pandemia de COVID foi a constatação por parte dos decisores políticos da forma como os espaços públicos ao ar livre podem ser importantes. Claro que sempre soubemos que os moradores se sentem atraídos e têm tendência a reunir-se em espaços públicos bem projetados e amigos dos peões, mas a pandemia veio destacar a sua importância para o bem-estar social.
A popularidade e o sucesso do nosso projeto mais recente de melhoramento, a criação de um paredão público ao longo da orla marítima de George Town, é mais uma confirmação da importância dos locais públicos. Quando estes coincidem com os bens patrimoniais, como em Penang, tornam-se uma parte inquestionável da identidade comunitária. É este o mérito das políticas de planeamento que salvaguardam e melhoram a qualidade dos espaços públicos, e o compromisso que o Estado e a Câmara Municipal da Ilha de Penang assumiram ao aderirem ao Quadro de Espaços Públicos preparado pela Think City e pelo AKTC em 2014, no seguimento da nomeação para a lista de locais Património Mundial da UNESCO.
Investir em espaços públicos também é positivo por razões económicas e sociais. É bom para a economia, uma vez que um ambiente acolhedor para os peões atrai pessoas que apoiam lojas, cafés e restaurantes. É bom para os habitantes, que apreciam um ambiente transitável, seguro e saudável, e é bom para as comunidades, pois os espaços abertos públicos fortalecem os laços sociais, reforçam os valores culturais e promovem a inclusão.
Qual é a importância histórica de George Town?
Francesco: A ocupação humana moderna em Penang começou quando um grupo étnico de Sumatra estabeleceu uma aldeia piscatória em Batu Uban em 1734. A forma urbana atual desenvolveu-se quando o capitão britânico Francis Light e a Companhia das Índias Orientais inglesas construíram um forte no cabo nordeste da ilha em 1786. Oito anos depois, quando Light morreu, George Town já se tinha tornado um porto franco com uma grelha de ruas à volta da extremidade da povoação. As crescentes atividades comerciais atraíram uma população diversificada que introduziu práticas culturais, hábitos sociais e formas arquitetónicas variados. Vieram pessoas das regiões vizinhas da Malásia, da distante China continental e do subcontinente indiano, já para não falar da longínqua Europa.
Estas características têm sido a essência de George Town até à atualidade e constituem a justificação para a nomeação da UNESCO em 2008, que reconheceu a sua inconfundível história e qualidades arquitetónicas. Tal como vem detalhado nos critérios de nomeação da UNESCO, George Town é um excecional exemplo de uma cidade de comércio multicultural no leste e sudeste da Ásia, com muitas e diferentes tradições culturais e grupos étnicos. Tal faz com que o património imaterial da cidade não tenha comparação em toda a região. Para além disso, a cidade possui, até aos dias de hoje, a maior concentração de edifícios históricos bem preservados da região, edifícios que praticamente desapareceram de cidades como Singapura e Hong Kong. Tem um complexo diferenciado de edifícios coloniais públicos do século XIX e do início do século XX, situados numa vasta área verdejante virada para o mar, e uma enorme variedade de lojas, moradias e estruturas de baixa altura que diferenciam e caracterizam o tecido tradicional de George Town. Estas características excecionais e as circunstâncias históricas justificam os esforços atuais de preservação dos bens culturais da cidade e a procura por um modelo diferente e mais sustentável de desenvolvimento urbano.
Como se iniciou o envolvimento do AKTC na Malásia? E porquê especificamente em Penang?
Francesco: Através do seu Programa das Cidades Históricas, o AKTC tem vindo a trabalhar nas últimas três décadas na reabilitação de áreas históricas no mundo muçulmano, com o objetivo de estimular o desenvolvimento social, económico e cultural. George Town, a zona histórica de Penang, era o cenário urbano ideal para o AKTC. Tinha sido recentemente nomeada para a lista de locais Património Mundial da UNESCO na altura do nosso envolvimento inicial e estava a sentir um aumento no turismo e na necessidade de infraestruturas relacionadas. As instituições locais e as organizações comunitárias estavam ansiosas por promover uma agenda baseada na conservação. Além disso, o AKTC e a Think City partilhavam uma abordagem comum ao nível da intervenção em locais históricos, uma abordagem que prevê uma estreita integração de atividades físicas e sociais e que considera os bens culturais como o principal trampolim para a regeneração e desenvolvimento urbanos.
O AKTC e a Think City têm colaborado desde 2013, tendo preparado um plano diretor estratégico e implementado inúmeros projetos de grande nível na área do património. As obras foram realizadas numa parceria público-privada pela Corporação de Conservação e Desenvolvimento de George Town (GTCDC), criada em 2015, e segundo o atual acordo de colaboração na gestão entre o GTCDC e o AKTC.
Quais os benefícios da reabilitação do paredão e como é que isso se encaixa no Plano Diretor como um todo?
Hamdan: O significativo investimento público necessário para melhorar a qualidade da orla marítima de George Town foi determinado por duas razões importantes. A primeira foi a necessidade de intervir urgentemente de forma a evitar o colapso do quebra-mar degradado e do estreito paredão público. A segunda proveio do desejo de criar um ambiente apropriado para a Esplanada, a vasta área verde conhecida localmente como Padang, e os seus espaços e edifícios públicos associados. Este complexo de monumentos continua até aos dias de hoje a ser o centro administrativo e cultural da cidade e o principal local de encontro social de toda a cidade de Penang.
Devido à sua importância no contexto mais vasto de uma cidade patrimonial, o projeto foi concebido como parte integrante de uma reabilitação e modernização geral da orla marítima norte de George Town. Esta é uma iniciativa que implica a reabilitação gradual de 100 000 metros quadrados de espaços públicos ao ar livre. Estes incluem a Esplanada central e abrangem os espaços à volta do Forte Cornwallis, os edifícios municipais e o Dewan Sri Pinang, um auditório multiusos e centro de espetáculos construído na década de 1970. O paredão à beira-mar, a Esplanada e a parte oriental da Light Street, ou Lebuh Light em malaio, todos elementos deste grande sistema de espaços abertos ao ar livre, já estão concluídas, com outras a serem iniciadas. Em particular, a recuperação dos fossos oeste e sul do Forte Cornwallis, que foram tapados na década de 1920 e que ainda estão preservados ao nível do subsolo, deve arrancar no início de 2023.
O quebra-mar renovado com vista para oeste.
AKTC / Mohamad Faizul Bin Ismail
Esta é uma obra importante que irá transformar completamente a natureza do espaço público central e aumentar o apreço pelo forte do século XVIII que, sem o seu antigo fosso, pode parecer hoje um monumento incompleto e menor. Esta atenção dada à reconstituição do ambiente físico e do significado urbano da orla marítima norte no âmbito global do Plano Diretor do local Património Mundial da UNESCO diferencia a nossa abordagem da maioria das iniciativas de planeamento contemporâneas. Muitas vezes, estas consistem numa combinação acidental de desenvolvimentos fragmentados e descoordenados. Estas desconsideram inevitavelmente a harmonia e a coerência das formações urbanas passadas e o sentido de lugar e continuidade que caracterizam as cidades que herdámos das gerações anteriores. Nós procuramos restabelecer estas continuidades urbanas e repor, pelo menos em parte, aquilo que foi destruído de forma tão rápida e imprudente pelas transformações urbanas mais recentes na cidade.
Como funciona este modelo de parceria entre o Estado de Penang, a Câmara Municipal da Ilha de Penang, a Think City e o AKTC?
Hamdan: Ao longo dos últimos anos, a Think City e o AKTC têm-se concentrado na criação de um modelo coerente e na operacionalização do programa de investimento urbano criado pelo Estado de Penang e pela Câmara Municipal da Ilha de Penang.
Após um processo minucioso de consultas e aprovações não só junto das autoridades competentes como também de organizações comunitárias e residentes, a Think City e o AKTC colaboraram na implementação de vários projetos especiais e deram apoio e aconselhamento relativamente a muitos outros. Este contributo prático foi justificado pela falta de experiência na área do restauro e da construção tradicional entre os empreiteiros locais e a dificuldade destes em saber escolher e aplicar os materiais de construção compatíveis com o tecido histórico.
Criámos uma sinergia efetiva entre a experiência internacional do AKTC em projetos de conservação e o conhecimento da Think City acerca do ecossistema social e dos seus intervenientes, competências profissionais, processos administrativos, capacidade de mobilização e potencial financiamento privado. Ao contrário das parcerias público-privadas convencionais destinadas a assegurar financiamento privado complementar para projetos públicos, nós procurámos reforçar a capacidade do sector público na área do património e garantir a eficiência operacional e a qualidade dos resultados num ambiente cultural e ambiental altamente sensível.
Podem descrever melhor as técnicas e processos de conservação utilizadas no paredão e em outras partes da cidade?
Francesco: Este último aspeto referido pelo Hamdan é muito importante. A sua pertinência está no cerne das técnicas e processos de conservação que adotámos. Estas não refletem uma abordagem nostálgica destinada a restabelecer práticas obsoletas ou trazer o passado de volta. Em vez disso, resultam de uma melhor compreensão da distância que separa as atuais práticas de planeamento e construção das práticas do passado e de uma noção mais plena dos fracassos e sucessos ocorridos nas intervenções em locais históricos e edifícios antigos ao longo das últimas décadas.
Por exemplo, hoje sabemos que os materiais de construção modernos são incompatíveis com os tradicionais. O uso de betão armado e cimento para reparar edifícios antigos, considerada uma solução mágica até há 50 anos, obrigou a uma infinidade de intervenções subsequentes de forma a reabilitar e reintroduzir os materiais e técnicas originais. Hoje em dia, à medida que vamos sabendo mais acerca da composição química dos materiais tradicionais e do seu desempenho a longo prazo, podemos melhorar a sua qualidade através de experiências e pesquisas, reconhecendo ao mesmo tempo os benefícios climáticos do uso e reciclagem de materiais naturais com baixas emissões de carbono, como pedra, madeira e tijolos reciclados.
Contudo, estes esforços são dificultados pela escassez de construtores e artesãos capazes de reparar edifícios antigos através de formas que respeitem a integridade e a autenticidade do tecido antigo. Por esta razão, os projetos realizados em conjunto pela Think City e pelo AKTC incluíram uma componente prática de formação de modo a apoiar e manter a reintrodução efetiva das práticas tradicionais.
Podem ser aplicados esforços paralelos ao nível de grandes aglomerados urbanos. No planeamento da orla marítima norte, por exemplo, examinámos mapas antigos e registos fotográficos para melhor perceber as transformações urbanas que tiveram um impacto negativo naquela área e recuperar, sempre que possível, o antigo espírito e qualidade do local. O que pode parecer, à primeira vista, um exercício abstrato tem como objetivo evitar muitas das recentes falhas no planeamento, através das quais as paisagens urbanas tradicionais eram arrasadas e remodeladas, ignorando os vínculos profundos e intergeracionais que ligam as pessoas aos locais urbanos que lhes são familiares.
Qual será o futuro da colaboração entre o AKTC e a Think City?
Hamdan: É possível imaginar e pôr em prática muitas formas de colaboração entre o AKTC e o Think City nos tempos mais próximos a todos os níveis. O AKTC, dada a sua experiência direta na implementação de projetos de conservação, programas de formação, iniciativas museológicas e na gestão de locais históricos e arqueológicos, é um parceiro fundamental para a Think City, à medida que nos envolvemos no restauro do Forte Cornwallis, na instalação de espaços de exposição e na gestão de locais culturais a nível regional, como o Programa de Turismo Arqueológico em curso na Região Norte da Malásia. Por outro lado, perante o foco da Think City nas questões ambientais, tivemos conversas com vista a apoiar o AKTC na expansão da sua visão e do âmbito das atividades relacionadas com as alterações climáticas e a resiliência urbana.
A tendência é para que a atenção dada a estas temáticas venha a aumentar, dado que esta questão é hoje prioritária em muitos países, em simultâneo com o agravamento das condições ambientais em todo o mundo. A reabilitação e regeneração urbanas serão cada vez mais direcionadas para questões relacionadas com o clima e a proteção dos recursos naturais. Estes aspetos terão de estar associados e estreitamente integrados na salvaguarda do património cultural. Tanto os recursos ambientais como culturais são hoje em dia, e com razão, considerados como duas faces da mesma moeda. No futuro, estes irão exigir maiores esforços e sinergias colaborativas com vista a regular as iniciativas de planeamento e as indústrias da construção no sentido de soluções baseadas na natureza e do uso de materiais tradicionais. Por todas estas razões, estamos extremamente otimistas acerca do potencial da colaboração entre as nossas organizações.
Francesco Siravo, AKTC | Hamdan Majeed, Think City |
Francesco Siravo é um arquiteto italiano especializado na preservação histórica e no urbanismo. Trabalha para o Fundo Aga Khan para a Cultura desde 1991, com projetos em Zanzibar, Cairo, Lahore, Mostar e Samarcanda. Trabalhou ainda para a UNESCO, PNUD e ICCROM, e realizou trabalhos de planeamento para várias cidades e zonas históricas em Itália. Já escreveu livros, artigos e dissertações sobre diversos temas da área da conservação arquitetónica e urbanismo.
Hamdan Majeed é o Diretor Geral da Think City, uma organização de impacto social criada em 2009 para criar lugares mais sustentáveis e equitativos para benefício de todos. Os seus conhecimentos, competências e estratégias centram-se em soluções urbanas, no ambiente, nas comunidades sociais e na economia cultural. Hamdan tem estado ativamente envolvido na definição de políticas e planos urbanos na Malásia. Anteriormente, foi Diretor de Investimento na Khazanah Nasional, onde identificou oportunidades de investimento estratégico com vista a promover o crescimento e o desenvolvimento na região.