Fundação Aga Khan
Quénia · 16 outubro 2023 · 1 Min
Justus Ndemwa senta-se num bidão plástico de água vazio. Desvia o olhar. A sua voz é suave e hesitante. “Há cinco anos que as chuvas são insuficientes", diz.
Há dias em que o homem de 72 anos, que sofre de anemia, come apenas arroz ou feijão. E não é o único. Atualmente, devido ao alto custo dos alimentos e ao impacto das alterações climáticas, milhões de quenianos passam fome todos os dias. À medida que a situação vai persistindo, algo terá certamente de mudar.
Ndemwa e os seus três filhos vivem numa barraca de tijolo e barro que não é maior do que uma cama de casal num terreno a poucos quilómetros da cidade de Kauwi, no condado de Kitui.
A paisagem é esparsa: um milheiral eivado, arbustos espinhosos e pedaços de relva seca. A família vive principalmente da esmola de pessoas em Kauwi. Ndemwa está à espera de transferências de dinheiro do Programa Alimentar Mundial. Tirando isso, reza. "Eu rezo muito", diz, "mais de cinco vezes por dia".
Existe um grande número de pessoas no Quénia a passar fome, em parte devido à escassez de alimentos e ao facto de os preços estarem muito acima da média dos últimos cinco anos. Para além da falta de oferta, o aumento do preço dos alimentos também se deve aos efeitos persistentes da pandemia da COVID-19, que causou uma escassez de mão-de-obra e restringiu as cadeias de abastecimento.
Além disso, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia prejudicou o fornecimento de fertilizantes. E levou também os países a impor controlos à exportação de alimentos. A volatilidade dos preços da energia também tem criado problemas para os agricultores em todo o mundo.
Perante este contexto geopolítico instável, alguns agronegócios no Quénia estão a mitigar os riscos dos agricultores mantendo ao mesmo tempo a produção de alimentos. Por exemplo, a Frigoken, um dos maiores exportadores de feijão-verde para a Europa, há décadas que vem firmando contratos com cada um das dezenas de milhares de pequenos agricultores que cultivam as plantas.
Muito antes do período da colheita, a empresa acorda um preço pré-estabelecido com cada agricultor para o seu produto, garantindo-lhes assim um mercado fiável. A Frigoken ajuda os agricultores a terem acesso a materiais como fertilizantes com base em crédito. Também oferece conhecimento técnico aos produtores através de programas de formação ministrados por agentes de divulgação. Deste modo, tanto os agricultores como a empresa aumentam as suas produções e rendimentos.
"Quem me dera que os meus pais tivessem cultivado assim"
No seu terreno verdejante no condado de Muranga, cercado por bananeiras e eucaliptos, Peter Joroge partilha o seu sucesso no cultivo de feijão-verde em colaboração com a Frigoken ao longo da última década: "No início, eu chegava anualmente aos 80 a 100 kg por unidade. Mas tenho vindo a aumentar gradualmente até aos 200 kg por unidade. Quem me dera que os meus pais tivessem cultivado assim como eu", acrescenta, "porque eu teria estudado mais."
Para além de apoiá-los no cultivo de culturas comerciais, a Frigoken também ajuda os agricultores a produzir alimentos básicos, como milho, para consumo próprio. Isto reforça a segurança alimentar dos pequenos agricultores e também a sua viabilidade a longo prazo enquanto produtores de alimentos.
– Peter Joroge, produtor de feijão-verde
Na fábrica de processamento da Frigoken, em Nairobi, 85% da força de trabalho são mulheres. Os funcionários recebem um salário digno, cuidados de saúde e planos de reforma. Existe inclusive uma creche. Contrariamente à perceção existente em relação aos agronegócios corporativos que exploram os trabalhadores para maximizar os lucros, a Frigoken apoia-os e ajuda-os a superar os riscos, oferecendo-lhes ao mesmo tempo um retorno comercial.
Mas para além das consequências da pandemia e da guerra na Ucrânia, existe outro fator que contribui para a fome no Quénia: as alterações climáticas.
De acordo com dados partilhados pelo departamento meteorológico queniano, as temperaturas médias anuais no condado de Kitui aumentaram 1,9 °C nos últimos 40 anos. Isto é mais do dobro da média a nível global. Dada a combinação destas temperaturas com uma falta prolongada de pluviosidade, não é de admirar que as plantações tenham dificuldades em se desenvolverem.
De acordo com a análise da Classificação Integrada das Fases de Segurança Alimentar (IPC) para o período entre Março e Junho de 2023, existiam no Quénia 5,4 milhões de pessoas com “insegurança alimentar aguda”. Estas pessoas passaram muitas vezes um dia ou mais sem comer absolutamente nada. A principal causa tem sido a seca; nas zonas mais afetadas, a precipitação tem estado aquém do esperado durante pelo menos quatro anos consecutivos. Por isso é que o número de pessoas a enfrentarem um nível tão severo de fome tem vindo a aumentar consistentemente desde 2020.
Perante esta situação desesperante, os agricultores, tecnocratas e políticos têm de arranjar respostas para os desafios ambientais e financeiros. Felizmente, existem iniciativas portadoras de esperança.
Rosemary Waweru estica uma vara de quatro metros por dentro da folhagem de um enorme abacateiro. Os frutos começam imediatamente a cair. Pum. Pum. Em menos de um minuto, oito frutos ovais estão caídos no chão. Ela amontoa-os com um sorriso. São do tamanho de ovos de avestruz, com uma brilhante casca verde-esmeralda.
A agricultora de 62 anos gere a sua própria quinta de três hectares em Kiamuchwe, uma aldeia no condado de Kirinyaga. Esta zona rural está pejada de terrenos com milho, ervilha, cevada e trigo, assim como culturas comerciais como abacates, mangas e bananas.
Waweru está a criar o seu próprio pesticida natural à base de plantas, assim como um fertilizante feito através da fermentação de penas de galinha em água. Ela adotou estas práticas através do projeto Maendeleo, um projeto-piloto de colaboração entre a Fundação Aga Khan (AKF) e a Frigoken lançado em 2022. Ao mudar de produtos químicos para orgânicos, os métodos de Waweru estão a melhorar a saúde dos solos, das plantas e das espécies nativas.
“A agricultura regenerativa consiste em reabilitar o solo”, diz Leigh Winowiecki, cientista dos solos do CIFOR-ICRAF em Nairobi. “Temos tomado os solos como garantidos durante demasiado tempo. Temos de pensar nos solos como a nossa conta bancária, não podemos continuar só a tirar sem repor nada.”
-Leigh Winowiecki, cientista dos solos
No Quénia, o projeto Maendeleo está a contribuir para os solos. A nível nacional, as práticas adotadas por agricultores como Waweru poderiam regenerar ecossistemas inteiros e regular o ciclo da água. Também podem mitigar as emissões de gases de efeito de estufa: ao reduzir o uso de produtos químicos, os quenianos também estão a ajudar a reduzir as emissões que decorrem da fabricação e do transporte destes produtos sintéticos.
As novas práticas agrícolas de Waweru não são apenas mais ecológicas; são também mais produtivas. As suas árvores passaram de uma média de 250 abacates produzidos por ano para mais de 350. Melhor ainda, agora que Waweru os produz naturalmente, ela vende-os por um valor até duas vezes o anterior.
Em menos de dois anos, o projeto Maendeleo apresentou resultados extraordinários: a produção média de milho entre os 2500 agricultores inicialmente abrangidos nos condados de Kirinyaga e Embu cresceu 30%, ao passo que a produção de café subiu 60%. Os ecossistemas agrícolas estão a florescer.
Os agricultores envolvidos no projeto-piloto praticamente já não têm custos com matérias-primas. Esta é a principal razão pela qual estão a conseguir poupar cerca de 20% em despesas em cada ciclo de cultivo. Outra poupança surge de uma diminuição nas despesas médicas. Antes de terem optado por produtos orgânicos, muitos agricultores tinham de ir regularmente a uma clínica para tratar doenças causadas pela exposição a pesticidas sintéticos.
A agricultura regenerativa está a restaurar os corpos e as terras. É mais económica para os agricultores e potencialmente mais produtiva. O projeto Maendeleo está atualmente a atrair um interesse "enorme" por parte de instituições de investigação, filantropos e do sector privado, diz Didier Van Bignoot, conselheiro global da AKF para a agricultura sustentável, segurança alimentar e resiliência climática. Ao longo dos próximos anos, o plano passa por abranger três milhões de pequenos agricultores no Quénia, Tanzânia e Uganda.
Mas o caminho para acabar com a fome é longo. Milhões de quenianos sofrem todos os dias. Combater uma carência generalizada desta magnitude requer décadas de investimentos nos pilares da sociedade: educação, saúde, infraestruturas e proteção social. Mas a agricultura também é importante. Como Peter Joroge sugeriu, a boa agricultura sempre foi fundamental para o desenvolvimento.
Enquanto escrevo isto, uns meses depois de ter visitado o Quénia, recordo as impressões com que fiquei daquele último dia de visita ao Condado de Kitui. Pastores a levarem animais magros ao longo de caminhos de terra batida. Milheirais degradados. O céu nublado, mas sem chover. Acima de tudo, aquela conversa com Justus Ndemwa. Houve tanto silêncio. As palavras pareciam não ter sentido.
No entanto, existem algumas iniciativas extraordinárias a mudar as coisas no terreno. Ao regeneraram os ecossistemas e ao apoiarem os meios de subsistência, elas estão a ajudar ao desenvolvimento dos sistemas alimentares. Os filantropos, o governo e as empresas precisam de apoiá-las. Mas não com mais palavras; com ações.