Agência Aga Khan para o Habitat
Paquistão · 1 fevereiro 2023 · 1 Min
“A primeira vez que vi um lago glacial fiquei realmente impressionado”, diz Deo Raj Gurung, “um quilómetro de comprimento, meio quilómetro de largura, umas centenas de metros de profundidade. Aquela extensão, aquela massa de água azul, lá em cima nas montanhas... Mais tarde, refleti acerca do perigo que essa quantidade de água poderia representar para as comunidades situadas por baixo do lago; seria um desastre.”
Gurung, que trabalha para a Agência Aga Khan para o Habitat (AKAH), está a recordar a sua primeira viagem de campo a um lago glacial em alta altitude em Raphstreng Tsho, no norte do Butão, em 1999. Desde então, devido ao aquecimento global, estes tipos de lagos têm-se vindo a multiplicar por toda a cordilheira dos Himalaias. As cheias provocadas por lagos glaciais, juntamente com outros impactos decorrentes das alterações climáticas em território de alta montanha, ameaçam atualmente centenas de milhões de pessoas em toda a Ásia Meridional.
Existem cerca de 5000 lagos glaciais nos Himalaias em risco de desencadear cheias, de acordo com Elisa Palazzi, investigadora da Universidade de Torino. O fenómeno é conhecido como cheia repentina causada por lago glacial (“glacial lake outburst flood” em inglês, GLOF): a barreira externa de rochas e sedimentos rebenta e, de repente, uma massa de água precipita-se pela encosta da montanha abaixo. Os habitantes das povoações nas montanhas ficam agora ansiosos com o clima quente da primavera devido à ameaça das GLOF.
O relatório do Painel Intergovernamental sobre as Alterações Climáticas (IPCC) de 2021 reconheceu que os glaciares nas montanhas estão “comprometidos com décadas ou séculos de degelo”. Observadores como Gurung acreditam que as cheias de 2022 no Paquistão se devem a dois fenómenos que podem ser atribuídos às alterações climáticas: o degelo dos glaciares e um período de monções antecipado. “Quando sucedem ambos em simultâneo”, diz Gurung, “costuma resultar em cheias na maioria das vezes”.
Para o Paquistão, as consequências foram catastróficas: mais de 1700 pessoas morreram, 33 milhões foram afetadas ou deslocadas, com danos e perdas económicas de quase 30 mil milhões de dólares.
Os montanhistas como Abdul Joshi têm vindo a registar a atual duração da temporada de alpinismo devido às alterações climáticas.
Photo courtesy of Abdul Joshi
Os alpinistas oferecem outra perspetiva útil. A atenção que prestam às condições e ao clima em alta altitude é fundamental para tomarem as decisões certas. Abdul Joshi tornou-se o primeiro montanhista paquistanês a escalar o Annapurna em 2021. Na primavera passada, subiu o Evereste, em parte para sensibilizar as pessoas para a ameaça das alterações climáticas. Ele tem certamente observado mudanças nos padrões climáticos.
“Quando subi ao Monte Evereste”, diz, “havia uma enorme janela de tempo para isso; muitos dias de bom tempo. Bem, isso foi positivo para os alpinistas, mas não tenho tanta certeza em relação à natureza, às montanhas e aos glaciares.”
As alterações climáticas nas zonas de montanha são importantes, porque as montanhas são importantes. Palazzi refere que as montanhas constituem um quarto da superfície terrestre da Terra e albergam mais de 1,5 mil milhões de pessoas; uma em cada cinco pessoas. São locais com grande significado cultural e espiritual. Sustentam um quarto da biodiversidade terrestre. Regulam o ciclo da água. As montanhas fornecem água doce e alimento a todas as espécies. Estes “presentes”, como Palazzi lhes chama, devem ser preservados para que todas as formas de vida sobrevivam e floresçam.
Mas as montanhas são “focos climáticos críticos”: as temperaturas estão a subir mais e a uma velocidade superior nas regiões montanhosas em comparação com as zonas de planície. Os impactos devastadores são claros: GLOF, avalanches, chuvas variáveis, deslizamentos de terras, escassez de água e perturbação da atividade agrícola. Estes perigos ameaçam centenas de milhões de pessoas em toda a planície Indo-Gangética. Uma migração humana calamitosa, com as populações a descerem as montanhas e os vales para se fixarem nos povoados mais abaixo, é um cenário provável. Como diz Palazzi: “O que acontece nas montanhas não fica nas montanhas.”
Elisa Palazzi, Universidade de Torino
Manzour Ali, de Gilguite, no norte do Paquistão, descreve os seus tempos de infância em que andava pelas montanhas com as cabras do avô. Naquela altura, os animais pastavam entre zimbreiros e árvores de khao. Ocasionalmente, nas encostas, Ali via lobos e felinos selvagens, assim como perdizes-vermelhas. Mas devido ao abate e à caça, as árvores e animais são hoje uma lembrança distante. Infelizmente, os preocupantes impactos das alterações climáticas estão a ser agravados por atividades humanas que estão a prejudicar os frágeis ecossistemas montanhosos.
Sem árvores, os campos e os meios de subsistência das comunidades de montanha estão mais expostos a perigos naturais, como deslizamentos de terras. Estes desastres, por sua vez, podem debilitar o abastecimento local de alimentos, tornando as comunidades ainda mais vulneráveis.
No entanto, as aldeias localizadas em altitudes mais elevadas também possuem um conhecimento local fundamental. Como destacam Rosa Laura Romeo e Sara Manuelli, do Secretariado da Parceria de Montanha da Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO) das Nações Unidas, as populações das terras altas, desde o Alto Atlas ao Hindu Kush, são ricos em práticas como a disposição em socalcos, a agrossilvicultura e a produção artesanal. Estas formas de trabalhar preservam geralmente os meios de subsistência e os ecossistemas. Também alimentam as tradições e a cultura, como artesanato, música, dança, folclore e práticas espirituais, que dão significado ao lugar e à comunidade. Desta forma, a perda destes costumes pode empobrecer tanto a vida social como a biodiversidade e as economias locais.
Ao que tudo indica, a resposta tem de abranger uma série de ações simultaneamente. Nas encostas das montanhas, as comunidades conseguem reduzir os riscos de cheias e deslizamentos de terras através da colaboração com o governo local, ONG e organizações internacionais para criar estruturas de amortecimento como diques de contenção em áreas importantes. No local onde Manzour Ali vive em Gilguite, é exatamente isto que a aldeia, com o apoio da AKAH, tem estado a fazer, usando pedras e terra para construir as suas defesas.
De uma forma mais alargada, Elisa Palazzi diz que é necessária uma melhor avaliação dos riscos, através do uso de dados climáticos melhorados, mais estações de monitorização em diferentes altitudes e locais, e tecnologias avançadas de modelagem climática.
A AKAH e outros intervenientes conseguiram recolher estes dados. Isto está a ajudar as comunidades de montanha e as autoridades nacionais a compreenderem e a planearem as respostas apropriadas aos riscos iminentes. Mas muito mais terá de ser feito para proteger aqueles que estão na linha de frente dos desastres causados pelo clima.
Romeo e Manuelli, da FAO, defendem que, no seio das comunidades de montanha, a capacitação legal, política e social das mulheres é crucial, tendo em conta o papel que estas desempenham como gestoras e guardiãs das práticas locais.
Romeo sublinha igualmente que a gestão descentralizada e o planeamento económico são fundamentais. “As populações de montanha querem continuar a viver nestas áreas”, diz, “mas ver-se-ão obrigadas a mudarem-se para as planícies se não conseguirem obter os mesmos serviços que as populações localizadas mais abaixo na montanha. Precisamos de investir nas zonas de montanha, nas economias locais e em serviços locais nestas áreas.”
A resposta mais importante aos riscos climáticos para as comunidades de montanha é provavelmente também é a mais desafiante: limitar o aumento da temperatura global através da redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE). A atmosfera da Terra, essa fina camada de gases que protegem o planeta, está atualmente demasiado carregada de GEE antropogénicos, com as quantidades a crescerem diariamente, apesar de todas as declarações de habitantes do planeta. Os impactos já se fazem sentir. É garantido que estes fenómenos biosféricos se irão repetir ao longo das próximas décadas. Globalmente, temos de nos adaptar a estes impactos e, simultaneamente, livrar as nossas sociedades dos hidrocarbonetos, tudo isto em poucos anos. É uma tarefa cuja magnitude não tem precedentes.
Para além dos aspetos técnicos das políticas, existe outro ponto relativo ao significado cultural das montanhas. O Monte Kailash, Kōya, Tacoma e Machu Picchu são apenas algumas das montanhas consideradas sagradas por civilizações de todo o mundo. A magnificência que as montanhas podem manifestar é certamente relevante. Em tempos, estive perto do cume do Monte Quénia ao anoitecer e vi as nuvens abaixo de mim, iluminadas; um interminável cobertor de algodão-doce brilhante e rosado. A experiência mudou a minha consciência. Combinar este amor pelo mundo natural com a nossa preocupação pela vida humana pode ser algo transformador.
Lembro-me da visão assustadora de Deo Raj Gurung: um enorme lago glacial a rebentar e a subsequente inundação a destruir tudo por baixo dele. Imagino centenas, milhares de lagos deste género nas cadeias montanhosas da Ásia Meridional e os danos que podem causar. Nesta região e a nível global, estamos num ponto de inflexão em relação às alterações climáticas: aceitamos as cheias no Paquistão em 2022 como um “novo normal”? Ou chegamo-nos à frente para mudar verdadeiramente o rumo dos acontecimentos? Não será fácil consegui-lo, mas a alternativa é inconcebível.
Harry Johnstone é um jornalista freelancer, cujos artigos sobre alterações climáticas e questões de segurança alimentar têm sido publicados no Financial Times e no The Guardian.
Assista ao filme O Céu Está Longe, A Terra É Dura