Paquistão · 1 março 2021 · 6 Min
Este texto foi adaptado de um artigo originalmente publicado em The Third Pole.
Shamim Bano, uma professora do ensino secundário, regressou recentemente de uma quinzena em Cabul, onde deu formação a mulheres afegãs em trabalhos de busca e salvamento. A formação “incluiu escalar montanhas e desfiladeiros através do uso de cordas e arneses, e de técnicas de deslize em tirolesa e rapel. Qualquer movimento em falso e podemos desencadear um desabamento de rochas”, explicou.
Acrescentou ainda que a formação incluiu também o manuseamento de vítimas em estado grave, “com ossos partidos, e lesões na cabeça, pescoço e costas”.
Quando era jovem, Bano observou a forma como a purdah (segregação com base no género) interferia nas ações de resgate. “Muitas vezes, os homens achavam desadequado salvar mulheres que praticassem a purdah [uso do véu islâmico integral] durante um desastre, deixando-as morrer”, disse.
Em 2008, ela agarrou a oportunidade de se tornar voluntária de busca e salvamento. Hoje é formadora e continua a participar todos os meses em exercícios para melhorar as suas competências.
Voluntários a atualizar as suas competências em gestão de cordas.
AKDN / AKAH
Muitos perigos
Bano vive em Gilgit-Baltistan, a região mais setentrional do Paquistão, um lugar onde convergem três das cadeias montanhosas mais altas do mundo: o Indocuche, a Cordilheira de Caracórum e os Himalaias. Estas incluem 50 picos montanhosos que ultrapassam os 7000 metros e cinco que excedem 8000 metros, incluindo o K2, o segundo pico mais alto do mundo - perdendo apenas para o Monte Evereste. A região é segmentada por poderosos rios de montanha, incluindo o Hunza e o Gilgit, e possui centenas de glaciares.
Mas a magnífica paisagem é sistematicamente perturbada por abalos, avalanches, deslizamentos de terras e cheias devido ao rebentamento de lagos glaciares. E com as alterações climáticas, os episódios de avanços súbitos e rebentamentos de lagos glaciares têm vindo a aumentar exponencialmente nos últimos anos.
Um clima em mudança
“As comunidades de Gilgit-Baltistan estão entre as mais afetadas pelas alterações climáticas”, disse Salmanuddin Shah, Diretor do Departamento de Gestão de Emergências da Agência Aga Khan para o Habitat no Paquistão (AKAH-P). As outras comunidades que enfrentam um risco crescente de desastres são as da região de Chitral, na província montanhosa de Khyber Pakhtunkhwa, e nas áreas costeiras da província de Sinde.
Bano é uma dos 50 000 voluntários - metade dos quais são mulheres - que a AKAH-P já formou em gestão comunitária do risco de desastres desde 1998.
A AKAH-P recebeu um Prémio de Ouro nos World Habitat Awards 2020 pela sua abordagem de integração da tecnologia e do conhecimento indígena, e por um nível “raro” de integração entre o trabalho de desenvolvimento e a gestão do risco de desastres ao nível das comunidades. Esta reúne geólogos, imagens de satélite e ferramentas de mapeamento de risco com as comunidades locais para criar Avaliações de Vulnerabilidades e Riscos a nível local que identifiquem as melhores formas de utilizar os terrenos e os locais mais seguros para construir.
Foram realizadas Avaliações de Vulnerabilidades e Riscos em 785 povoações desde 2004, principalmente em Gilgit-Baltistan e Chitral. O trabalho envolve muitos voluntários, que ajudam na construção de abrigos, no desenvolvimento de planos comunitários de gestão de desastres e na instalação de postos de monitorização climática e sistemas comunitários de alerta precoce.
Salva-vidas
“As equipas dedicadas de voluntárias são uma parte importante do trabalho eficaz realizado junto das comunidades, ainda que os homens e mulheres sejam formados em conjunto”, disse Bibi Nusrat, uma enfermeira de 40 anos de Karimabad, que tem trabalhado como responsável de formação em gestão do risco de desastres ao nível da comunidade desde 2000. Em 2020, visitou 15 das 150 aldeias em zonas propensas a avalanches na região de Chitral para ensinar as comunidades a protegerem-se.
Tal como Bano, Nusrat também destacou a importância das mulheres enquanto um componente central destas equipas: “Acho necessário as mulheres fazerem parte de uma equipa de resgate, pois os homens das famílias podem nem sempre estar presentes no momento do desastre, e manter presente a sensibilidade cultural e a purdah é algo muito importante para a população local.”
Nem todos os apoiantes da purdah acreditam que esta deva ser aplicada numa situação de desastre. Nawaz Khan, da aldeia de Nusrat, que tem 55 anos e é uma rigorosa seguidora da purdah, disse: “Não me importaria se um homem estranho resgatasse as mulheres da minha família.”
Infelizmente, este ponto de vista está muitas vezes ausente, mesmo nas principais zonas urbanas, e ainda mais em lugares remotos onde os desastres naturais são mais comuns.
No ano passado, o trágico desabamento de um edifício em Rizvia Society, na zona de Golimar, em Karachi, deixou soterradas quase duas dúzias de mulheres e crianças. De acordo com Shah, os residentes bloquearam os socorristas do sexo masculino que tentavam chegar às mulheres presas debaixo dos escombros. Munira Barkat está na equipa desde 2013 e disse: “Na nossa sociedade, que é muito conservadora, isto continua a acontecer. Os homens sobreviventes são inflexíveis, nenhum socorrista do sexo masculino pode tocar no cadáver das suas mulheres. Preferem deixá-las soterradas nos escombros... por isso é que é fundamental ter mulheres a trabalhar nas equipas de resgaste.”
As equipas de busca e salvamento são compostas por 40% de mulheres. “Os homens e mulheres recebem formação para as mesmas competências”, disse Khan.
Pôr o treino em prática
A primeira grande missão de resgate de Bano foi em 2010, quando um grande deslizamento de terras atingiu a aldeia de Attabad, no vale de Hunza. O lago Attabad galgou as suas margens, deixando 6000 pessoas desalojadas, depois de a água ter entrado em suas casas, pomares, quintas e escolas. “Pela primeira vez, tive de enfrentar um cenário real, inclusive com cadáveres”, disse Bano.
Para Nusrat, a avalanche de Março de 2016 em Susoom, que matou nove alunos, foi um acontecimento que ela jamais esquecerá. Passou duas semanas numa tenda, durante tempestades de neve e chuva, para tratar dos cadáveres, e de pessoas inconscientes, feridas e com hipotermia. “Devo ter ajudado dezenas e devo ter limpo e preparado oito corpos antes de enviá-los para as suas famílias”, lembrou.
Formar camponeses
Nusrat explicou como são realizadas as sessões de formação de um dia nas aldeias com o objetivo de elaborar um plano local de gestão de riscos. “Nós ensinamos-lhes sobre avalanches, os vários tipos, as estações e como se protegerem em situações desse género. Após ser preparado um perfil histórico da aldeia, é elaborado um plano de evacuação com uma rota segura assinalada que deverá ser usada para chegar a um abrigo equipado com tendas, alimentos, medicamentos etc.” A sua equipa recolhe também dados sobre as habitações em locais de risco relativamente a avalanches.
A este procedimento segue-se a composição de Equipas Comunitárias de Resposta a Emergências inclusivas ao nível do género, Equipas locais de Busca e Salvamento e Equipas de Avaliação e Resposta a Desastres.
“Foi difícil e eu estava assustada, mas hoje posso dizer sem medo que uma mulher pode fazer tudo aquilo que um homem faz”, disse Safi Gul, de 37 anos, de Susoom, que se voluntariou juntamente com Nusrat durante a avalanche.