Por Sua Alteza o Aga Khan, França · 8 março 2019 · 13 Min
(Entrevista de 29 de Janeiro de 2019)
Em 1957, o Aga Khan sucedeu ao seu avô como líder dos ismailis. Ele é o 49.º Imam de uma comunidade estimada entre 12 e 15 milhões de fieis que vivem em 25 países. O Príncipe Karim Al-Husseini (o seu nome de nascimento) criou a Rede Aga Khan para o Desenvolvimento (AKDN), que está comprometida com o desenvolvimento no mundo, independentemente de existir uma comunidade ismaili no país em questão. Este homem discreto de 82 anos, membro da Grã-Cruz da Legião de Honra, recebeu-nos para uma das suas raras entrevistas a um órgão de comunicação francês na sua propriedade em Gouvieux, Oise.
Sua Alteza, o senhor é um chefe de estado, mas um chefe de estado sem Estado.
Na verdade, sou o Imam de uma comunidade internacional. Como sabe, não existe nenhum estado que seja completamente ismaili. A comunidade está espalhada pela Ásia Meridional, Ásia Central, Médio Oriente, África e agora na Europa, América do Norte e Austrália. Havia uma parte da comunidade na antiga União Soviética, pois existe uma grande comunidade no Tajiquistão. Tem-se vindo a internacionalizar desde a morte do meu avô em 1957.
Mas como devemos considerá-lo a nível internacional? Como um Chefe de Estado? Um príncipe? Um Imam?
Como um Imam.
Que comunidade é essa da qual é o 49.º Imam?
É uma comunidade muçulmana xiita que existe há séculos, com sucessivos imams, e está hoje provavelmente mais internacionalizada do que nunca. Essa é a grande diferença em relação ao passado. Criámos instituições em países, especialmente no Ocidente, nos quais não tínhamos qualquer presença anteriormente. Temos universidades, escolas, instituições financeiras num grande número de países que servem a comunidade e a população local.
Qual é o seu objetivo? Reduzir a pobreza?
É melhorar a qualidade de vida, e isso envolve, de facto, a redução da pobreza, mas também proporcionar às pessoas os meios para melhorarem a sua qualidade de vida. É esse o objetivo. Por exemplo, tentamos erradicar doenças sempre que é possível, queremos construir instituições nacionais ou internacionais, tais como universidades, escolas e hospitais, que ajudem a comunidade e as sociedades. Portanto, é necessário que a comunidade seja valorizada e reconhecida, e as suas instituições devem servir os países nos quais estão sedeadas.
Mas não é invulgar que um líder espiritual esteja envolvido na área do desenvolvimento?
No Islão não. Esta é uma das principais diferenças entre o Islão e muitas outras religiões. Aqui, o Imam é responsável pela qualidade de vida dos homens e mulheres que o admiram. Ele envolve-se na vida quotidiana deles.
Mas existem muitos Islões. O senhor representa o lado social?
No Islão xiita, os Imams sempre se preocuparam com a qualidade de vida da comunidade. No Islão sunita, é algo muito mais disperso, uma vez que existem muitos outros Imams.
O senhor está a procurar mostrar um outro lado da religião?
Julgo que é mais uma questão de interpretar aquilo que entende por religião. O 48.º Imam tinha os seus próprios pontos de vista e uma enorme carreira política. Eu, pessoalmente, não estava interessado numa carreira política, mas tenho-a, através da comunidade. Representa uma grande população em países onde existe uma vida política. E é por isso que criámos conselhos nacionais em vinte países, formados por voluntários comprometidos com a melhoria da qualidade de vida.
O senhor também quer projetar uma imagem de grande ética?
Sim. Considero que ter uma comunidade comprometida com a ética é muito importante, e particularmente em países democráticos.
Encontro com o Presidente Kennedy na Sala Oval da Casa Branca em 1961.
Robert Knudsen
Acabou de mencionar o seu antecessor (o seu avô). O senhor é o 49.º Imam. E já o é há mais de 60 anos. O que aprendeu durante estas seis décadas?
Existem certamente algumas coisas que se destacam. Em 1957, a Guerra Fria era um grande problema para os governos ocidentais, e para o mundo em geral. Essa Guerra Fria teve um impacto significativo no Terceiro Mundo. A Guerra Fria já não existe. Foi substituída por outras visões acerca do que é um Estado, por isso a questão central agora é a de uma boa administração.
Quando olhamos para o mundo, vemos que não estamos a ir no sentido desse tipo de administração, pelo contrário, parece-me que estamos a regredir.
Creio que é uma situação instável e variável. É isso que dificulta o planeamento. Os ex-países soviéticos saíram da órbita do bloco soviético, outros países colonizados tornaram-se independentes. Depois, houve toda uma série de acordos regionais que desempenharam o seu papel. As instituições financeiras tornaram-se muito importantes e têm impacto nas economias em particular do Terceiro Mundo. Vivemos num mundo totalmente diferente. E o mais importante é conseguir prever a mudança, de tal forma que as instituições de uma comunidade possam começar a antecipar-se e a preparar-se. E é um trabalho muito complexo, mas fascinante, e se for bem gerido irá produzir excelentes resultados.
Nunca teve momentos em que se sentiu desiludido?
Certamente, e momentos em que me sinto preocupado, porque muitas vezes a desilusão surge no seguimento da preocupação. Em primeiro lugar, preocupamo-nos, e depois começamos a sentir forças que não são necessariamente aquelas que queremos e tentamos antecipar. Um grande debate, que vem desde a década de 1960 e continua até hoje, é o papel do Estado na vida da sua população.
Através da sua fundação, está a sobrepor-se ao papel insatisfatório de certos estados?
Estamos a tentar de facto envolvermo-nos onde quer que possamos desempenhar um papel positivo, e não apenas para os ismailis. Temos frequentemente parceiros que trabalham connosco e até parceiros internacionais, como o Banco Mundial e outras instituições similares.
É por isso que se tornou parceiro do Fórum da Paz?
Sim, é uma das medidas que tomei. A paz é claramente algo que estamos a tentar estabilizar e, acima de tudo, fortalecer. É muito complicado. No entanto, é muito importante tornar o diálogo uma parte da vida política quotidiana. É um processo lento, mas estamos a chegar lá.
O senhor trabalha através da sua fundação, a AKDN, que é uma das maiores organizações privadas de desenvolvimento do mundo...
Quando olhamos para o Terceiro Mundo, no qual a comunidade ismaili está particularmente presente, é preciso questionarmo-nos acerca dos governos. E sempre fui da opinião que a sociedade civil deve desempenhar um papel fundamental no futuro de todas as populações. Para tal, temos de consolidá-la e fortalecê-la. E isso significa agarrar nas instituições mais importantes da sociedade civil e darmos-lhes o apoio e o encorajamento naquilo que pudermos, talvez ajudá-las a agirem de forma diferente daquilo que foi feito até ao momento. Especialmente no que à descolonização diz respeito.
O senhor quer representar uma voz da razão?
Oh, não sei se será esse o caso, mas espero que seja uma voz da lógica. O papel do Imam também passa por antecipar as mudanças, para ajudar a realizar mudanças positivas. No final, é a força e a qualidade da sociedade civil que determina a qualidade de vida das pessoas.
Parece que a sua mensagem de paz, forjada a partir da lógica e da razão, é cada vez menos escutada nos dias de hoje.
Sim, é verdade, mas julgo que também se deve a problemas de administração e desequilíbrios económicos. As influências estrangeiras também têm um grande papel a desempenhar. Estamos perante um mundo que está a mudar e a tentar desenvolver-se. Eu sou otimista, mas cauteloso.
A AKDN só trabalha nos países que solicitam o vosso envolvimento ou são vocês que fazem o pedido?
Trabalhamos em países onde exista uma comunidade ismaili ou em países que nos pedem para nos envolvermos, mesmo que não exista uma comunidade. Constatámos que os fenómenos regionais são muito importantes. Mesmo que não estejamos presentes num determinado país, se existir uma grande comunidade num país vizinho, nós procuramos colaborar com esse Estado.
O Aga Khan com o Primeiro-Ministro do Mali e o Imam da Mesquita de Djingareyber em Timbuktu, Mali, em 2003. As obras de conservação deste monumento do século XIV património mundial da UNESCO é financiado pelo Fundo Aga Khan para a Cultura.
AKDN / Gary Otte
Considera-se um benfeitor da humanidade?
Um benfeitor não. Ser benfeitor significa estar envolvido em filantropia; eu trabalho dentro da estrutura da instituição do Imamat. Claro que fazemos filantropia, mas também criamos instituições económicas que têm a sua própria vida empresarial e têm a intenção de perdurar e crescer.
Em sessenta anos, já construiu muita coisa.
Sim, construí coisas porque as circunstâncias exigiam que eu o fizesse e porque era aquilo que a comunidade precisava; mas este processo de crescimento é, ao mesmo tempo, um processo infinito. Como tal, o importante é tentar prever os desenvolvimentos futuros na sociedade e criar instituições que possam contribuir para um crescimento positivo. Por exemplo, é importante reduzir a pobreza tanto quanto possível.
Essa é uma batalha difícil.
É provavelmente uma batalha sem fim à vista. Tentamos ir numa direção. Não sabemos necessariamente o que vai acontecer, mas sabemos que estamos nesse caminho. Por exemplo, ao nível da saúde ou do microcrédito, podemos medir o progresso através da melhoria da qualidade de vida.
Os chefes de estado estrangeiros costumam pedir-lhe conselhos?
Sim, é verdade. Especialmente em países onde existe uma grande comunidade ismaili ou instituições fortes. E também funciona ao contrário. Eu falo com eles porque preciso de saber quais as suas ideias acerca do futuro, ou qual é a melhor instituição académica ou económica.
Mas com os seus investimentos, não está a tentar fazer proselitismo?
Não, nós não fazemos proselitismo. Poderíamos fazê-lo, mas não sentimos essa necessidade. Existem certas religiões nas quais o proselitismo é recomendado. Porém, a nossa atitude é que cada um deve fazer aquilo que quiser. Se quiserem tornar-se xiitas, podem tornar-se xiitas, se quiserem tornar-se xiitas ismailis, podem tornar-se xiitas ismailis.
Qual o próximo grande projeto que lhe é especialmente caro?
Acredito que a sociedade civil hoje em dia é muito influenciada pelas grandes instituições, quando estas são bem fundadas, estáveis e expandem a sua influência para a sociedade civil. E é isto que estou a tentar apoiar no Terceiro Mundo. Por exemplo, no campo da educação, temos universidades na Ásia Central, no Paquistão e na África Oriental. São bastante influentes. Estamos a tentar criar instituições fortes que apoiem a sociedade. Não só com universidades, mas também com hospitais, bancos, empresas financeiras, etc.
O senhor não é um homem de negócios?
Não, mas tive de aprender o que isso é. Nós temos as nossas próprias instituições que não estão, de todo, limitadas à comunidade ismaili. Começamos com o microfinanciamento e chegamos ao financiamento das maiores empresas. Estamos a tentar apoiar o desenvolvimento económico. Há países que saíram da pobreza e, onde quer que nos encontremos, temos de contribuir para este desenvolvimento e assegurar que este seja positivo e estável. E estas duas coisas não andam necessariamente de mão dada.
No Tajiquistão, vários milhares de membros da comunidade ismaili juntaram-se para ouvir o seu Príncipe e Imam.
AKDN / Gary Otte
Por exemplo, programas de desenvolvimento que incluam a melhoria de habitações.
Vou explicar-lhe porquê. Quando estudámos o desenvolvimento económico das sociedades pobres, percebemos que, quando as famílias pobres conseguem poupar algum dinheiro pela primeira vez, investem-no nas suas casas. Muitas vezes um telhado de zinco, água corrente ou um sistema de esgoto. Por outras palavras, os seres humanos olham primeiro para tudo aquilo que acontece à sua volta e da sua família. Ao trabalharmos nas casas das pessoas, estamos a cuidar das necessidades básicas, e isso terá um impacto em várias gerações da família. Trata-se muitas vezes de um recurso que aumenta de valor se a propriedade for bem gerida. Assim, a habitação tem um grande impacto em muitas áreas da vida de uma família, e é por isso que eu quis monitorizar o desenvolvimento e tentar apoiar instituições que ajudem a estimular a mudança.
A cultura também é uma prioridade. A AKDN apoia tanto arquitetos como músicos. Inclusive ao ponto de criar Prémios?
Estou interessado na música porque estamos a tentar aumentar o alcance internacional das culturas do Terceiro Mundo. Se pudermos torná-los conhecidos e apreciados no Ocidente, poderemos dar-lhes estabilidade e promover o conhecimento acerca das culturas destes países. E muitas vezes existem ligações que são extraordinárias, especialmente, por exemplo, na música 'devocional'. Por exemplo, a música da Ásia Central.
O senhor seria um chefe de estado perfeito?
(Risos...) Não, não. Digamos que trabalho em muitos países, e vou aprendendo. Como já ando nisto há algum tempo...
Mas ainda tem esse desejo.
Fui educado num país onde o desenvolvimento é visto como um fenómeno da vida mundial e, portanto, observo o máximo possível, e tento garantir que as nossas instituições olham para o futuro. Porque no final, a antecipação é algo necessário na vida, seja para uma pessoa pobre ou muito rica. Temos de ser capazes de antecipar de forma inteligente.
Antecipar e pensar nos outros?
E construir.
Os seres humanos estão no centro de tudo?
Claramente. E eu tenho uma convicção: a pobreza existe, mas não é inevitável. Precisamos de ter coragem para analisá-la e compreendê-la. Há alguns anos, analisámos a demografia dos ismailis e percebemos que o ambiente era o maior contribuinte para a pobreza nas comunidades carenciadas. Algumas comunidades nascem e vivem em locais do nosso mundo onde a economia local não consegue apoiar a vida humana. Por isso, depois de chegarmos a esta conclusão, recomendámos a estas comunidades que se deslocassem e se instalassem num outro local. Existem lugares no nosso planeta onde a vida humana é insustentável, e se existem comunidades a viver lá, por razões históricas, estamos cientes de que não há futuro para elas. Isto não é subjetivo, é um facto económico. Temos o dever de dizer isso às pessoas, e depois tentamos desenvolver os recursos para ajudá-las a deslocar-se. Há países onde, há 50 anos, a nossa comunidade vivia em condições mesmo muito difíceis e nós dizíamos-lhes: “Escutem, demorem o tempo que for preciso, talvez não seja possível para esta geração, talvez para a próxima geração, mas eduquem-se, preparem-se para se deslocarem para outro lugar."
Esse é um processo doloroso?
Sim, e é sempre difícil deslocar as comunidades. É uma decisão que se toma relutantemente. As circunstâncias tornam-na necessária. Se existem provas quantificáveis que mostram que a qualidade de vida é impossível, as pessoas vêem-se obrigadas a tirar essas conclusões. Nesse sentido, preparamos a geração mais jovem através da educação, por outras palavras, com o ensino de línguas e conhecimentos técnicos. Neste caso, não estamos a ser subjetivos, temos de ser rigorosos e por vezes bastante ríspidos. Porque as comunidades não se deslocam sozinhas. Temos de preparar o local para onde se vão deslocar, criar instituições, escolas, instituições financeiras, etc. Foi o que fizemos no Tajiquistão, por exemplo.
Sua Alteza, julga ser considerado um bom homem?
É esse o papel do Imam, mas não apenas o meu.
É essa a sua visão.
Julgo ser essa a visão correta para um Imam.
Porque escolheu Portugal como a sede do seu Imamat?
O Imamat é uma instituição que tem a sua origem no Oriente. E eu queria que tivesse uma sede num país ocidental que reconhecesse o Imamat como uma instituição religiosa. Portugal é um país que assinou a Concordata com Roma e, portanto, houve um precedente que me permitiu assinar uma Concordata com um estado ocidental, que era, de certa forma, semelhante.
O Presidente Emmanuel Macron e Sua Alteza o Aga Khan após o encontro no Palácio do Eliseu.
AKDN / Cécile Genest
No entanto, o senhor é profundamente francês, ou pelo menos francófilo?
Sim... Muitos dos meus estudos foram em francês e moro em França. Temos relações extremamente cordiais com o Estado, mas não existe uma Concordata como a que poderíamos ter com Portugal.
Têm embaixadas em muitos países, mas não em Paris.
Não, mas temos um acordo com o governo francês e as nossas instituições operam em França à luz deste acordo, que compromete o Imamat.
Também está muito comprometido com Chantilly. Porquê?
É uma tradição nossa. No passado, muitas figuras eminentes na história do Imamat contribuíram para a qualidade de vida do seu local de residência... é uma tradição que apliquei aqui.
Também é conhecido em todo o mundo pelos cavalos. O senhor possui 700 puros-sangues?
Não sei qual é o número ao certo, porque obviamente varia conforme a época do ano, mas na verdade é um negócio que herdei. Foi o meu avô quem começou, primeiro em Inglaterra e depois em França. O meu pai assumiu o negócio e, após a sua morte, a família questionou-se se deveríamos continuar este negócio ou não. E decidimos que sim, quisemos tentar seguir esta tradição. É muito comum no mundo muçulmano. É um desporto muito cativante.
Os seus jóqueis usam equipamentos de seda verde e ombreiras vermelhas, porquê?
São as cores da família. O meu avô usava castanho e verde em Inglaterra e vermelho e verde em França, e eu mantive os dois.
O seu pai e o seu avô apareceram com mais frequência nas manchetes dos jornais do que o senhor. O senhor opta por uma abordagem mais discreta.
Acredito que, enquanto uma instituição muçulmana no Ocidente, posso ser mais eficaz se não estiver constantemente nas primeiras páginas. Não há razão para eu aparecer nas notícias. Quando existem problemas, tento resolvê-los discretamente. Nem sempre consigo, mas de um modo geral, a discrição tem-me sido útil.
O senhor é membro da Grã-Cruz da Legião de Honra. O que significa para si essa distinção?
É um reconhecimento pelo qual tenho muito carinho. França acolheu o meu avô, o meu pai, o meu irmão, eu próprio, o meu tio. É um país que é muito especial para nós.