Por Sua Alteza o Aga Khan, Atlanta, Georgia USA · 18 abril 2008 · 20 Min
Que grande privilégio que é para mim estar hoje aqui convosco – tenho ansiado por este encontro desde há muito tempo. Estou particularmente grato à Monique Seefried pela sua generosa apresentação e por ter descrito de forma tão graciosa o contexto local e global no qual nos reunimos.
Esta é, por diversas razões, uma ocasião particularmente importante para mim.
É importante, evidentemente, porque assinala o 40º aniversário daquela que eu considero como uma das mais notáveis instituições seminais da nossa era – o programa do Bacharelato Internacional (IB). E digo-o porque o programa da IB corporiza uma idéia poderosa, a confiança de que a educação pode reformular a maneira como o mundo pensa sobre si próprio.
Sinto-me particularmente honrado por poder dar esta palestra – a “Palestra Peterson”, ela própria possuidora de um enorme legado. Celebra com grande dignidade a vida e obra de Alec Peterson, cuja liderança intelectual e moral foram fundamentais para esta esta organização e para todos os que por ela têm sido influenciados.
Foi com humildade que recebi inicialmente o convite para proferir a Palestra Peterson. E devo confessar que esse sentimento de deferência cresceu à medida que comecei a olhar para a ilustre lista de anteriores palestrantes. E quando dei um passo adiante, e li as palavras que estas pessoas proferiram ao longo dos anos, fiquei profundamente impressionado com a responsabilidade desta missão.
As Palestras Peterson – todas elas reunidas - dariam uma maravilhosa lista de leituras recomendadas, para um excelente curso universitário, sob o tema da educação internacional. Após leitura atenta destes textos, questionei-me se ainda haveria algo mais por dizer sobre o tema! Mas caso alguém venha um dia a integrar estas leituras num programa de estudos universitários, então talvez as minhas observações de hoje possam ser adequadamente consideradas sob o título de “leituras adicionais optativas!”
Por último, esta ocasião tem especial importância para mim pois surge, como poderão saber, durante o meu 50º aniversário como líder espiritual, ou Imam, dos Muçulmanos Shia Ismailis. Estamos hoje simultaneamente a celebrar um 40º e um 50º aniversário – e ambos representam oportunidades fundamentais de conectar o nosso passado com o nosso futuro, as nossas raízes com os nossos sonhos.
Deparei-me com uma enorme surpresa ao ler os anteriores textos das Palestras Peterson. É que não apenas numa, mas em duas das palestras proferidas em anos recentes, foi citado o meu avô! Foi dele, Sir Sultan Mahomed Shah Aga Khan, que em 1957 herdei o meu actual papel. Dele herdei também uma forte preocupação pelo avanço da educação, especialmente nos países em desenvolvimento. Ambos os tópicos, Educação e Desenvolvimento, têm estado no cerne do meu próprio trabalho ao longo destes últimos cinquenta anos e serão igualmente o tema central da minha intervenção de hoje.
Pouco depois do final da 2ª Guerra Mundial, eu e o meu irmão fomos estudar para uma escola na Suíça, Le Rosey, e após alguns anos naquela escola, apareceu um novo treinador de remo, que segundo nos informaram então, seria também o treinador de hóquei no gelo durante o período de Inverno. O seu nome era Vaclav Rubik, não o inventor do cubo de Rubik, mas tal como o famoso cubo, também ele uma desafiante influência. Ele era também um dos mais talentosos e inteligentes desportistas que eu jamais conheci. Integrou a equipa nacional Checa de hóquei no gelo, que tem sido uma das melhores equipas do mundo e era também membro das equipas nacionais de remo com oito e quatro remadores sem timoneiro. A sua esposa estava na equipa nacional de hóquei em campo. Le Rosey foi extremamente afortunada por ter tido estes dois atletas disponíveis para treinar os seus estudantes. Mas havia uma outra dimensão em Vaclav Rubik: possuía um doutoramento em Direito, e ele e a sua mulher eram refugiados políticos que fugiram e fizeram a pé todo o percurso entre a Checoslováquia e a Suíça. Ele era uma pessoa carismática, e após apenas 2 anos de treinos, conseguiu formar uma equipa de remo a quatro, em sub-18, que venceu praticamente todas as competições em que entrou, incluindo o Campeonato Nacional Suíço para todas as idades.
Costumávamos passar longas horas em autocarros, viajando de uma competição de remo para outra, de um jogo de hóquei no gelo para outro. Recordo-me de lhe ter perguntado o que pretendia fazer, uma vez que não imaginava que um homem com tais qualidades e aptidões, fosse permanecer indefinidamente como treinador numa pequena escola Suíça. A sua resposta foi que se tinha candidatado como refugiado político nos Estados Unidos, e assim que fosse aceite aqui, viria imediatamente.
Perguntei-lhe como ganharia a vida quando viesse para os Estados Unidos, uma vez que estava certo de que não ele não quereria continuar a sua carreira como treinador desportivo, e a sua resposta permanece na minha mente desde essa altura. Ele disse, “eu e a minha esposa fugimos a pé desde a Checoslováquia sem nada para além das roupas que trazíamos no corpo e os sapatos que trazíamos calçados, mas tenho uma boa educação e quando chegar aos Estados Unidos, isso será o que me irá ajudar a conseguir o tipo de emprego que gostaria de ter”. Quando ele saiu de Le Rosey, fui perdendo o contacto com ele, e a última coisa que soube foi que se tinha tornado executivo muito sénior na Singer, empresa de máquinas de costura. A moral da história é clara - podemos não ter nada no bolso, e apenas a roupa e os sapatos que usamos, mas se tivermos uma mente bem educada, seremos capazes de agarrar as oportunidades que a vida nos oferece, e recomeçar sempre que necessário.
Penso que muitos membros da Comunidade Ismaili, tal como outros asiáticos expulsos do Uganda por Idi Amin, que refizeram vidas de sucesso noutras partes do mundo, vos contariam a mesma história.
Desde o inicio que a Organização Bacharelato Internacional compreendeu esta verdade primordial. Mas no contexto deste início de século, gostaria de combinar as minhas palavras de congratulação e louvor com algumas palavras de desafio e algumas interrogações.
Qual é o eventual lugar e propósito do IB nas sociedades em desenvolvimento - e num contexto muçulmano? Como podem essas sociedades contribuír para a comunidade IB? E como podem instituições que estão enraizadas em tradições culturais diferentes melhor trabalhar juntas para ligar mundos que têm muito frequentemente estado amplamente separados?
Como ponto de partida para abordar estas questões, gostaria de me debruçar sobre as citações do meu avô mencionadas em duas das anteriores Palestras Peterson. Ele incluiu-as num discurso que fez enquanto Presidente da Sociedade das Nações, em Genebra, há cerca de 70 anos atrás. São originárias de um poeta Persa, Sadi, que escreveu: “os filhos de Adão, criados a partir do seu próprio e igual barro, são partes de um só corpo. Quando uma das partes sofre, todas as outras partes sofrem também. Ó tu que és indiferente ao sofrimento dos teus companheiros, és indigno de ser chamado homem.”
Ireis de seguida compreender porque são tais palavras apropriadas para as Palestras Peterson. Elas falam do valor fundamental de um elo universal humano - um dom do Criador - que simultaneamente requer e valida os nossos esforços para educar para a cidadania global.
Também gostaria de citar uma afirmação infinitamente mais poderosa acerca da unidade da humanidade, porque emana directamente do Sagrado Corão, e para a qual gostaria de solicitar a vossa reflexão. O Sagrado Corão dirige-se não apenas aos Muçulmanos, mas a toda a espécie humana quando afirma: “Ó Humanidade! Tende atenção ao vosso dever para com o Senhor que vos criou a partir de uma única alma e dela criou a sua companheira e delas espalhou-vos numa multiplicidade de homens e mulheres.”
Estas palavras reflectem uma profunda visão interior espiritual - um imperativo Divino se o quiserem - que, na minha perspectiva, deve estar subjacente ao nosso compromisso educacional. É por vermos a Humanidade, apesar das nossas diferenças, como sendo os filhos de Deus, nascidos a partir de uma só alma, que insistimos em ir para além das fronteiras tradicionais à medida que deliberamos, comunicamos e educamos internacionalmente. A afirmação de missão do IB explicita isto muito bem: “encorajar os estudantes de todo o mundo a tornarem-se, ao longo de toda a sua vida, aprendizes activos, compassivos e ao longo de toda a sua vida, que compreendem que outras pessoas, com as suas diferenças também podem ter razão.”
A comunidade IB tem reflectido há muito e de forma substancial sobre o que significa para os estudantes tornarem-se poderosamente conscientes de um mundo mais vasto – e lidar eficazmente com a sua diversidade e a sua crescente interdependência. A comunidade IB tem lutado vigorosamente para conseguir lidar com um dos dilemas básicos do nosso tempo – como ter em conta dois desafios bem diferentes.
O primeiro desafio é o facto de o mundo se estar cada vez mais a tornar um “só” local, uma tremenda rede de interacção global, que derruba as linhas de divisão e separação que caracterizaram a maior parte da sua história. Esta acelerada onda de interdependência é algo que inicialmente definimos como “internacionalização”, quando o programa IB foi lançado há 40 anos. Agora referimo-nos a isso como “globalização”. Ela trás consigo simultaneamente inúmeras bênçãos e sérios riscos - entre os quais o não menos importante perigo que a globalização se venha a tornar em sinónimo de homogeneização.
Porque haveria de ser tão perigosa a homogeneização? Porque a diversidade e a variedade constituem algumas das mais belas dádivas do Criador, e porque o profundo compromisso para com a nossa própria particularidade faz parte do que significa ser-se humano. Sim, precisamos de estabelecer elos conectantes entre as culturas, mas cada cultura deve procurar honrar um sentido especial de si mesma.
O revés da globalização é a ameaça que pode colocar às identidades culturais.
Mas, há também, um segundo desafio que está a intensificar-se no nosso mundo. Em alguns aspectos é exactamente o oposto do impulso globalizante. Falo de uma crescente tendência para a fragmentação e confrontação entre os povos. Numa altura de crescente insegurança, o orgulho cultural pode, muito frequentemente, tornar-se numa forma de normatizar determinada cultura.
A busca de identidade pode então tornar-se num processo de exclusão – de forma a que nos definimos menos por aquilo que somos a FAVOR e mais pelo que somos CONTRA. Quando isto acontece, a diversidade deixa rapidamente de ser uma fonte de beleza para passar a ser um motivo de discórdia. Acredito que a coexistência destes dois impulsos oscilantes – a que poderemos chamar de novo globalismo, por um lado, e de novo tribalismo por outro - será um desafio central para os líderes educacionais nos anos vindouros. E isto será particularmente verdade nos países em desenvolvimento com o seu caleidoscópio de diferentes identidades.
Como devem saber, o mundo em desenvolvimento tem estado no centro do meu pensamento e do meu trabalho ao longo da minha vida. E herdei a tradição de compromisso educacional do meu avô. Foi há um século que ele começou a construir uma rede de 300 escolas nos países em desenvolvimento, os Serviços Educacionais Aga Khan – para além de ter fundado a Universidade Aligarth, na Índia.
Na verdade, o legado que vos descrevo remonta a mais de um milhar de anos, na época em que os nossos antepassados, os Imams-Califas Fatimidas do Egipto fundaram a Universidade Al-Azhar e a Academia do Conhecimento no Cairo. Durante muitos séculos o compromisso para com a aprendizagem foi um elemento central em culturas Islâmicas remotas. Esse compromisso continuou durante o meu próprio Imamat através da fundação da Universidade Aga Khan e a Universidade da Ásia Central, e através do recém estabelecido programa das Academias Aga Khan.
E é neste ponto que os nossos caminhos se cruzam.
Como haveis ouvido, o currículo das nossas Academias centra-se no programa IB. Esperamos que a rede de Academias Aga Khan se torne numa ponte eficaz para estender o programa IB de forma mais vasta para o mundo em desenvolvimento.
Cada um de vós conhece bem o lado IB desta ponte Pensei em acrescentar algumas palavras sobre o lado das Academias nesta ponte, e sobre o propósito que me levou a iniciar esta rede internacional de escolas de alta qualidade.
O nosso Programa das Academias baseia-se na convicção que uma liderança nativa eficaz será a chave para o progresso no mundo em desenvolvimento, e que à medida que acelera o ritmo de mudança, torna-se claro que a mente humana e o coração serão os factores centrais para a determinação da riqueza social.
No entanto, em muitas partes do mundo em desenvolvimento, a capacidade de concretizar o potencial dos recursos humanos é ainda, infelizmente, limitada.
Demasiados daqueles que deveriam ser os líderes de amanhã estão a ser deixados para trás. E mesmo aqueles estudantes que conseguem ter uma boa educação, têm que frequentemente ir buscar os seus sonhos em lugares distantes - e nunca mais regressam a casa. O resultado é um fosso crescente entre a liderança que estas comunidades precisam e o tipo de liderança que os seus sistemas educacionais disponibilizam.
Durante grande parte da História, os líderes nasceram para os seus papéis, ou lutaram para os conseguir - ou até compraram o seu acesso. Mas neste novo século – um tempo de perigo invulgar e de agitada promessa, é imperativo que as aristocracias de classe dêem lugar às aristocracias de talento - ou para usar um termo ainda mais adequado – às meritocracias. Não será um conceito fundamental para a própria democracia que a liderança seja escolhida com base no mérito?
A educação para a liderança deve implicar algo mais do que o simples acto de desenvolver competências. Ser-se proficiente em competências adquiridas de forma mecânica não equivale a ser-se instruído. E a formação que desenvolve essas competências, por mais importantes que sejam, é algo de diferente do que a escolaridade na arte e na ciência do pensamento.
A tentação de incutir ao invés de educar é compreensivelmente forte por entre populações há muito tempo frustradas. Em muitos desses sítios, as emoções públicas flutuam entre a amarga impaciência e o cepticismo indiferente, e nem a impaciência ou a indiferença são atmosferas propícias ao incentivo do pensamento fundamentado.
Mas numa era de mudança acelerada, quando até as mais sofisticadas competências ficam facilmente desactualizadas, iremos encontrar muitos aliados no mundo em desenvolvimento que têm vindo a compreender que a competência mais importante que uma pessoa pode adquirir é a capacidade de continuar a aprender.
Num mundo em rápida mudança, uma mente ágil e adaptável, um temperamento pragmático e colaborativo, uma forte dimensão ética - são cada vez mais estas as chaves para uma liderança eficaz. E eu acrescentaria a esta lista a capacidade para a humildade intelectual, que mantém a nossa mente constantemente aberta a uma variedade de pontos de vista e que abraça o intercâmbio pluralista.
Estas capacidades, a longo prazo, serão fulcrais para o mundo em desenvolvimento. Por sinal, as mesmas capacidades que o programa IB e as Academias Aga Khan procuram exortar e inspirar.
As Academias têm uma dupla missão: providenciar uma educação notável para alunos excepcionais, provenientes de diferentes meios, e proporcionar formação de calibre internacional a um crescente grupo de professores inspiradores.
Nestas 18 Academias, cada uma delas educando entre 750 a 1200 alunos do ensino primário ao secundário, projectamos que haja um professor por cada 7 alunos, e iremos colocar enorme ênfase no seu recrutamento, formação e boa remuneração. Esperamos que estes professores se tornem em modelos para outros professores nas suas regiões.
Com esta finalidade em vista, esperamos abrir, durante o próximo ano, novos Centros de Desenvolvimento Profissional para a formação de professores na Índia, Bangladesh, Moçambique e Madagáscar. Projectos semelhantes estão em estudo para o Afeganistão, Paquistão, Síria, Tanzânia e Uganda. Estes Centros de Desenvolvimento Profissional irão funcionar antes de abrirmos as portas aos estudantes.
Em suma, a nossa estratégia começa com o bom ensino. Temos primeiro de formar os professores.
Conforme as academias forem abrindo, uma-a-uma, irão ter como características a admissão baseada no mérito, campus residenciais e instrução bilingue. Esta politica de linguagem exemplifica o nosso intuito de unir o particular ao global. O inglês irá permitir que os nossos estudantes tomem plenamente parte da arena internacional, enquanto que a língua materna irá permitir aos alunos ter acesso à sabedoria das suas próprias culturas. Unir o particular ao global irá requerer enorme cuidado, sabedoria, e até algumas experiências de campo, de modo a assegurar que é realmente possível desenvolver um currículo que responda efectivamente aos impulsos globais e tribais. Embora isto constitua um feito por si só, será igualmente importante fazer bem a ponte com preocupações de índole muito prática, tal como a natureza dos exames de admissão à Universidade por parte de cada país, e os recursos humanos necessários no âmbito do planos de desenvolvimento pluri-anuais de cada país.
As Academias têm dado muita atenção a componentes que descreveríamos como globais no nosso currículo. Temos a intenção de colocar especial ênfase sobre o valor do pluralismo, as dimensões éticas da vida, a economia global, e o vasto estudo sobre as culturas do mundo (incluindo as Civilizações Muçulmanas) e em sistemas políticos comparativos. Professores experientes do IB já nos têm estado a auxiliar a integrar estas importantes áreas de enfoque no currículo das Academias.
Muitos dos estudantes irão também estudar, durante pelo menos um ano, noutras Academias da rede, fora dos seus países de origem. E, claro está, estipulámos que o nosso programa deveria qualificar os nossos estudantes para o diploma do Bacharelato Internacional. Também o corpo docente terá a oportunidade de viver noutros países, aprender novas línguas e interagir com outras culturas.
Poderais estar a interrogar-vos-vos com que base é que os Serviços Aga Khan para a Educação e o Programa das Academias seleccionaram novas disciplinas para inclusão no currículo da Academia, e pensei que seria importante ilustrar isso.
No que diz respeito ao pluralismo, a nossa experiência tem nos dito que em países da Europa, Ásia, África e Médio Oriente, o falhanço em fazer viver diferentes povos em paz, entre si, tem sido uma enorme fonte de conflito. A experiência diz-nos que as pessoas não nascem com a capacidade inata nem com o desejo de ver o Outro como igual a si na sociedade.
O orgulho na identidade separada por parte de determinados indivíduos pode ser tão forte que torna obscuro o valor intrínseco de outras identidades. O pluralismo é um valor que tem de ser ensinado.
Relativamente à questão da Ética, encaramos uma sociedade civil competente como um dos principais contribuidores para o desenvolvimento, particularmente quando as democracias são fracas, ou os governos se tornaram disfuncionais. Estamos, pois, preocupados com a qualidade da ética em todas as componentes da sociedade civil, e rejeitamos a noção de que a ausência de corrupção ou fraude nos governos seja, por si só, suficiente para assegurar a cada indivíduo um ambiente favorável rigoroso limpo e. A fraude na medicina, a fraude na educação, a fraude nos serviços financeiros, a fraude nos direitos de propriedade, a fraude no exercício de aplicação da lei e nos tribunais, são riscos que têm um efeito dramático no desenvolvimento dos povos. Isto é especialmente verdade nos meios rurais, onde a maior parte dos povos dos países em desenvolvimento vive, mas onde a fraude frequentemente não é reportada nem corrigida, mas é simplesmente aceite como uma inevitável condição da vida.
Educar para a economia global será também essencial para assegurar que os sistemas económicos falhados do passado sejam substituídos. Mas isto não deve significar uma aceitação simplista dos desequilíbrios e desigualdades associados à nova economia global de hoje. Precisamos desenvolver um amplo consenso que se centre na criação de um ambiente económico global que seja universalmente justo.
O nosso programa irá igualmente ensinar sobre as culturas do mundo. Os conflitos interculturais surgem inevitavelmente a partir da ignorância intercultural - e ao lutar contra a ignorância também reduzimos o risco de conflito.
Por fim, queremos também educar sobre sistemas políticos comparativos, de modo a que mais e mais pessoas no mundo em desenvolvimento sejam capazes de competentemente fazer juízos de valor sobre as suas Constituições, os seus sistemas políticos, e sobre como podem elas melhor desenvolver abordagens democráticas que respondam bem às suas necessidades. Por exemplo, referendos públicos para sancionar novas Constituições fazem pouco sentido quando esses referendos requerem juízos por parte de pessoas que não compreendem as questões que lhes estão a ser colocadas, nem as alternativas que devem ser consideradas.
Estas áreas temáticas programadas possuem em comum duas características: todas elas têm impacto sobre um grande número de países ao longo dos continentes do nosso mundo, e abordam problemas que vão levar muitas décadas para resolver.
E, se por um lado, as Academias alcançaram razoáveis progressos na definição das grandes áreas do seu currículo, devo ser franco ao afirmar que os temas mais tribais, específicos a cada país individual, ou talvez a regiões, são áreas onde um grande volume de trabalho permanece por ser feito, e onde, de facto, devemos esperar percorrer, passo-a-passo, um prudente processo – fazendo o fato à medida do que cada situação individual requeira.
O que esperamos criar, em suma, é uma rede de 18 laboratórios educacionais, todos eles partilhando um objectivo comum superior, mas cada um aprendendo com as experiências específicas dos outros.
A primeira Academia Aga Khan abriu no Quénia, há quatro anos, e o primeiro grupo de estudantes formados pelo programa IB Diploma concluiu os seus estudos no passado mês de Junho. A qualidade dos seus trabalhos académicos, incluindo o seu sucesso nos exames do IB, juntamente com o seu historial de serviço comunitário, torna-nos optimistas quanto ao futuro.
À medida que avançamos para esse futuro, gostaríamos de colaborar com o movimento do Bacharelato Internacional numa desafiante e inspiradora nova aventura educativa. Juntos, podemos ajudar a reformular a própria definição de um cidadão global bem-educado. E podemos começar esse processo por colmatar a lacuna de aprendizagem que está no cerne do que alguns têm chamado um Choque de Civilizações, mas que eu sempre senti como sendo antes um Choque de Ignorâncias.
Nos anos que vêm pela frente, não seria de esperar que um estudante de uma escola IB em Atlanta soubesse tanto sobre Jomo Kenyatta ou Muhammad Ali Jinnah como um estudante em Mombassa ou Lahore conhece sobre o filho pródigo de Atlanta, o Reverendo Doutor Martin Luther King, Jr? Não deverá um aluno IB do Bangladesh, ao ler os poemas de Tagore na Academia Aga Khan em Dhaka, poder também encontrar as obras de outros laureados com o Prémio Nobel da Literatura, como o romancista turco Orhan Pamuk ou os Norte-Americanos William Faulkner ou Toni Morrison?
Não deveria o estudo da arquitectura medieval incluír quer a Catedral de Chartres em França, quer a Mesquita de Djenne no Mali? E não deveriam alunos IB que estudam ciência aprender sobre Ibn al-Haytham, o estudioso muçulmano que desenvolveu a óptica moderna, bem como sobre os seus antecessores Euclides e Ptolomeu, cujas idéias ele desafiou?
À medida que trabalhamos em conjunto para colmatar o fosso entre o Oriente e o Ocidente, entre o Norte e o Sul, entre economias em desenvolvimento e desenvolvidas, entre zonas urbanas e rurais, iremos redefinir o que significa ser-se bem-educado.
Equilibrar o universal e o particular, é um desafio ancestral – ao nível intelectual e prático. Mas que pode muito bem tornar-se num desafio ainda mais difícil, à medida que o tempo passa e o planeta continua a encolher.
Porque, afinal, uma coisa é falar de entendimento cultural quando o “Outro“ vive do outro lado do mundo. Outra coisa, frequentemente bem diferente, é quando o ”Outro” vive do outro lado da rua.
Admiro o desejo da organização do IB de assumir os desafios culturais do nosso tempo, de ir para partes do mundo e áreas da sociedade onde tem sido menos activa no passado. Mas devemos todos ter bem claro, ao embarcarmos em projectos deste tipo, que as pessoas com quem iremos lidar apresentarão desafios diferentes do que antes.
À medida que escolhemos os nossos alvos de oportunidade, devemos examinar os ambientes e considerar cuidadosamente as mudanças que podem tornar esses programas mais relevantes para o futuro.
Algumas pessoas dizem-nos que a globalização é um processo inevitável. Isso pode ser verdade em certas áreas de actividade - mas não há nada de inevitável sobre a globalização de abordagens educativas e de padrões.
Conceptualizar um sistema global de examinação é uma das mais difíceis iniciativas intelectuais que posso imaginar – e igualmente uma das mais estimulantes. O estímulo intelectual de trabalhar num projecto como este poderia manter os melhores educadores mundiais ocupados durante décadas. Essa tarefa pode ser mais viável, no entanto, devido ao importante avanço que a organização do IB já fez ao pensar num currículo global. A vossa experiência do IB, independente das Academias Aga Khan, bem como as vossas Palestras Peterson ao longo dos anos, representam uma excelente fundação para esse processo.
À medida que o IB se desloca para lá da cultura judaico-cristã onde é mais experiente, terá de tornar os educadores noutras zonas do mundo na sua mais recente parte interessada. Isso provavelmente significa desenvolver manifestações mais explícitas de uma ética cosmopolita, fundada, se possível, em valores humanos universais. Isto bem poderá vir ser um processo progressivo, sempre em evolução - cada vez mais inclusivo, mas que poderá nunca vir a terminar.
O que é que significaria, para o programa IB, por exemplo, trabalhar em sociedades em grande medida rurais – onde nunca tenha havido recursos ou os incentivos para apoio a uma educação séria e sustentada? O que é que significaria aplicar os conceitos de pensamento crítico e juízo individual em sociedades que estão mergulhadas na habitual deferência à idade e autoridade, a regras e rituais?
O que seria necessário para que uma organização que está profundamente enraizada na tradição humanista ocidental possa falar com relevância em contextos culturais profundamente não-ocidentais? E como deveremos lidar com os desafios da educação moral – construída a partir de valores universais - em contextos onde as lealdades religiosas e ideológicas são particularmente intensas?
Coloco estas questões não porque tenha respostas feitas para elas - mas porque acho que o colocar de tais questões será essencial para o nosso progresso. Coloco as questões não para desencorajar-vos a expandir – mas antes para vos encorajar – à medida que vos expandais – a fazê-lo com um completo entendimento dos riscos e das tensões que irão inevitavelmente encontrar.
Acredito que podemos encontrar respostas para estas questões. Poderão não ser respostas plenas, completas e perfeitas, mas serão, pelo menos, respostas iniciais, respostas preliminares, respostas em progresso. E cada passo ao longo do caminho vai-nos ensinar mais. O que é essencial é que busquemos.
Na análise final, o grande problema da humanidade numa era global será o de equilibrar e conciliar os dois impulsos de que falei: a busca por uma identidade distintiva e a procura pela coerência global. O que este desafio irá requerer de nós, em última instância, é um profundo sentido de humildade pessoal e intelectual, uma compreensão de que a diversidade em si é um dom do Divino, e que abraçar a diversidade é uma forma de aprender e de crescer - não de diluir as nossas identidades, mas de enriquecer o nosso auto-conhecimento.
O que é necessário vai para além da mera tolerância ou simpatia ou sensibilidade - emoções que frequentemente podem ser manifestadas por uma alma generosa. A verdadeira sensibilidade cultural é algo muito mais rigoroso, e ainda mais intelectual do que isso.
Implica uma disponibilidade para estudar e aprender por entre as barreiras culturais, uma capacidade de ver os outros como eles se vêem a si próprios.
Esta é uma tarefa desafiante, mas se fizermos isso, então vamos descobrir que o universal e o particular podem efectivamente ser reconciliados. Tal como afirma o Corão: "Deus criou macho e fêmea e tornou-vos em comunidades e tribos, para que possais conhecer-vos um ao um outro." (49,13) São as nossas diferenças que simultaneamente nos definem e nos ligam.
Estou confiante de que o programa IB continuará a ter sucesso ao alargar a sua liderança para novas arenas nas próximas décadas. Mas à medida que isso acontece, uma variável-chave será o espírito com que abordamos estes novos compromissos.
Haverá, para nós, uma forte tentação de olhar para estas novas fronteiras como lugares para os quais podemos trazer uma dádiva especial de conhecimento acumulado e sabedoria bem vivida. Mas gostaria de advertir contra tal ênfase. A razão mais importante para nós abraçarmos estas novas oportunidades reside não tanto naquilo que podemos levar até eles, mas naquilo que podemos aprender com eles.
Muito obrigado.