Por Sua Alteza o Aga Khan, Toronto, Canada · 21 setembro 2016 · 9 Min
Bismillah-ir-Rahman-ir-Rahim
Madame Adrienne Clarkson
Dr. John Ralston Saul
Primeiro-Ministro Kathleen Wynne
Madame Reid, Primeira-Dama da Islândia
Sua Excelência Elizabeth Dowdeswell
Sua Adoração John Tory
Ministros
Ilustres Convidados
Senhoras e Senhores
Este é um momento verdadeiramente memorável para mim. Quero enviar os meus profundos agradecimentos a Adrienne Clarkson, John Ralston Saul e ao Instituto para a Cidadania Canadiana por este maravilhoso Prémio, e a todos vocês por partilharem comigo este momento importante na minha vida.
Imaginem a honra que sinto por receber um prémio com o nome de Adrienne Clarkson, recebê-lo das mãos de Adrienne Clarkson, e ser dedicado aos ideais tão bem personificados por Adrienne Clarkson.
Como sabem, Madame Clarkson sentiu, durante a sua própria vida, o verdadeiro significado de Cidadania Global. Depois de ter chegado ao Canadá como refugiada aos dois anos, veio a tornar-se uma cidadã canadiana de pleno direito e no melhor sentido da palavra. Também se tornou uma extraordinária defensora daquilo que a Cidadania Global realmente significa. Nos vários papéis que desempenhou ao longo dos anos, enquanto uma jornalista e difusora consciente, enquanto uma distinta Governadora-Geral do Canadá e uma poderosa figura matriarcal a nível nacional, procurou chegar sempre aos vários tipos de pessoas no Canadá e em todo o mundo, não só através de um discurso eloquente, mas também de uma ação determinante.
Madame Clarkson não quis ser apenas uma amiga e uma aspiração; tem sido também para mim uma parceira pela qual tenho a maior estima. A sua contribuição para o trabalho da nossa Rede para o Desenvolvimento ficou marcada pelo seu mandato enquanto Administradora do Centro Global pelo Pluralismo em Ottawa, um dos muitos projetos colaborativos, baseados num profunda gratidão, entre as minhas instituições e o governo canadiano.
Pode-se dizer que receber um Prémio de Cidadania Global das mãos de Adrienne Clarkson é como receber um Prémio de Excelência em Hóquei das mãos de Wayne Gretzky!
Quanto ao conceito de Cidadania Global, foi algo em que comecei a pensar seriamente quando me tornei Imam dos muçulmanos ismailis há quase 60 anos. Felizmente, pude partilhar a minha reflexão sobre a Cidadania Global com as pessoas empenhadas da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento - com quem desejo hoje partilhar esta distinção. Aquilo que percebemos desde o início foi que para avançarmos com a nossa agenda de desenvolvimento, seríamos obrigados a respeitar a imensa diversidade de etnias, línguas, culturas, religiões e filosofias. Em suma, aprendemos a abraçar os valores da Cidadania Global.
Ao debatermos este conceito e o espírito do Pluralismo no qual ele se baseia, creio ser plausível reconhecermos uma crescente frustração em relação à história do pluralismo. Nós falamos com sinceridade sobre os valores da diversidade, sobre viver com dificuldades. Mas em muitos casos, uma maior diversidade parece traduzir-se numa maior divisão; uma maior complexidade e mais fragmentação, e uma maior fragmentação pode aproximar-nos do conflito.
Aquilo que está em jogo parece aumentar com o tempo, mas os obstáculos também. E é por isso que nesta minha breve declaração irei centrar-me nas permanentes ameaças aos ideais da Cidadania Global.
É óbvio que um dos maiores desafios é o simples facto de a diversidade estar a aumentar em todo o mundo. A missão não passa apenas por aprender a viver com essa diversidade, mas também aprender a viver com uma maior diversidade a cada ano que passa.
Um dos aspetos desta realidade em mudança é o problema da migração humana. Hoje, mais do que nunca, existem muitas pessoas em movimento, voluntária e involuntariamente, através das fronteiras nacionais. Em vários países, a questão da migração é uma questão central da vida política. Muitas vezes é A questão central. E as velhas mentalidades, incluindo definições limitadas e separatistas de cidadania, não têm estado à altura do desafio.
Foi isso que se verificou ainda há três meses, quando a Grã-Bretanha votou para sair da União Europeia. Isso também é verdade nos debates pré-eleitorais em França, onde vivo atualmente, e nos Estados Unidos, onde fiz os meus estudos universitários. O mesmo se passa no Canadá, como bem sabem, embora o Canadá tenha estado na dianteira a nível mundial na expansão do conceito de cidadania. Mas este desafio é algo que se sente em todo o mundo. E nem sequer é provável que o problema da migração se venha a dissipar brevemente, especialmente quando existem cada vez mais pessoas deslocadas pela guerra, a violência e a carência económica.
Num mundo assim, o “Outro” deixa de ser aquela pessoa distante que encontramos principalmente nas páginas de uma revista, num ecrã ou numa exótica viagem de férias. O "Outro" é cada vez mais alguém que surge naquilo que consideramos o "nosso espaço", ou mesmo "em cima de nós". E pode ser complicado lidar com essa realidade.
Quando o Outro é visto como um potencial concorrente, para um emprego, por exemplo, mesmo quando esse medo é infundado, o desafio das atitudes pluralistas torna-se ainda mais difícil. Para quem se sente inseguro, é tentador procurar bodes expiatórios, meter as culpas em alguém, sempre que a sua autoestima parece ameaçada. Por isso, muitas vezes julgamos mais fácil definir a nossa identidade como aquilo que somos contra, do que como aquilo que somos.
Esses medos podem ter uma origem cultural, ou serem motivados por questões económicas, ou estarem enraizados psicologicamente. Mas não deverão ser subestimados. E eles não irão desaparecer com palavras bonitas a proclamar ideais solenes.
É por isso que quero sublinhar, como Adrienne Clarkson sempre fez, a nossa responsabilidade de melhorar a qualidade de vida em lugares do mundo onde essa qualidade seja insatisfatória - combater a pobreza, melhorar a saúde e a educação, aumentar as oportunidades - como a primeira manifestação de uma ética pluralista saudável. O Pluralismo significa responder à diversidade não apenas no nosso país, mas a nível global, criando genuínas “visões de oportunidade” onde quer que existam restrições ou retrocessos.
Mas esta crescente ameaça aos valores pluralistas não sucede apenas perante a movimentação física de pessoas de um lugar para o outro. À medida que as novas tecnologias vão encolhendo o planeta, existem forças distantes que se vão tornando terríveis ameaças. Estamos preocupados com os perigos da degradação ambiental, por exemplo, incluindo o espectro das alterações climáticas. Temos observado a forma como toda a economia local pode ser afetada por economias distantes. Temos noção de como essas forças perigosas podem disseminar-se através das fronteiras nacionais - doenças e armamentos mortais, redes criminosas ou ameaças terroristas. E muitas vezes, o impulso humano não vai no sentido de colaborar além-fronteiras para enfrentar estes perigos, mas sim isolar-se de um mundo ameaçador.
A forma como comunicamos com os nossos vizinhos a nível global é um elemento que prejudica o cumprimento deste desafio. Por vezes pensamos que as novas tecnologias podem salvar-nos. Se nos conseguirmos conectar de forma mais rápida, com um custo menor, em distâncias maiores, com mais pessoas, pensem no que poderia acontecer! Iríamos todos aprender mais um sobre o outro e talvez nos entendêssemos melhor. Mas não estou certo de que as coisas estejam a ir nesse sentido. A explosão de informações disponíveis significa muitas vezes uma menor atenção dada às informações relevantes, e até um excesso de desinformação. Uma liderança ponderada dá normalmente origem a falatórios barulhentos.
A proliferação dos meios de comunicação é outro desafio: aquilo que cria muitas vezes é precisamente uma fragmentação nos média. Muita gente vive hoje nas suas bolhas de informação, resistindo à diversidade de perspetivas. As novas tecnologias podem tornar a comunicação mais fácil, mas também podem tornar o pluralismo muito mais difícil.
Existe ainda outra dimensão do desafio que se prende com as realidades da natureza humana. Muitas vezes, ouvimos em discussões acerca de Cidadania Global que as pessoas são basicamente iguais. Debaixo da pele, no fundo dos nossos corações, somos todos irmãos e irmãs - é isso que nos dizem - e o segredo para um mundo em harmonia passa por ignorar as nossas diferenças e destacar as nossas semelhanças.
Aquilo que me preocupa, no entanto, é quando essa mensagem é interpretada com o sentido de que as nossas diferenças são triviais, e que podem ser ignoradas e, por fim, eliminadas. E esse não é um bom conselho. É, na verdade, impossível. Sim, o nosso conhecimento e a nossa humanidade subjacente devem servir de motivação na nossa busca por um pluralismo saudável. Mas essa busca também deve ser construída com base numa resposta empática face às nossas importantes diferenças. E isso, repito, é um ponto sobre o qual Adrienne Clarkson se expressou eloquentemente.
Fingir que as nossas diferenças são triviais não irá persuadir a maioria das pessoas a adotar atitudes pluralistas. Isso pode até assustá-los. As pessoas sabem que as diferenças podem ser um desafio, que as divergências são inevitáveis, que nossos semelhantes podem por vezes ser desagradáveis. Como Madame Clarkson disse, e vou citá-la: “o segredo para a harmonia social é aprender a conviver com pessoas das quais possamos não gostar”. O que eu temo é que mencionar apenas a nossa humanidade comum possa fazer com as pessoas sintam as suas identidades distintivas ameaçadas. E isso pode prejudicar o desafio do pluralismo.
Quem sou eu? Qui suis-je?Devemos todos colocar essa questão. As respostas partirão de lealdades básicas - à família, religião, comunidade, língua, as quais proporcionam uma saudável sensação de segurança e valor. Mas se o apelo ao pluralismo parece diluir essas velhas lealdades, este novo apelo pode não se revelar eficaz. A aceitação dos valores da Cidadania Global não deve significar um comprometimento dos laços de cidadania local ou nacional. O apelo do pluralismo deverá pedir-nos para respeitarmos as nossas diferenças, mas não ignorá-las; integrar a diversidade, sem desvalorizar a diversidade.
O apelo ao cosmopolitismo não é um apelo à homogeneização. É sim uma afirmação da solidariedade social, sem impor uma conformidade social. A identidade de uma pessoa não precisa de ser diluída num mundo pluralista, mas sim preenchida, como um fio brilhante num tecido de muitas cores.
Quando Adrienne Clarkson apresentou as Palestras de Massey na CBC há dois anos, ela usou uma frase que se tornou o título do seu livro: “Pertencer, o Paradoxo da Cidadania”. A palavra “paradoxo” expressa precisamente o desafio que tenho estado a referir.
Talvez a chave para resolver o Paradoxo da Cidadania seja pensar em camadas de identidade sobrepostas. Afinal, nós podemos respeitar uma variedade de lealdades - a uma religião, a uma etnia, a uma língua, a uma nação, a uma cidade, a uma profissão, a uma escola, até mesmo a uma equipa desportiva! Podemos partilhar algumas dessas identidades com umas pessoas e outras identidades com outras pessoas.
A minha própria comunidade religiosa identifica-se orgulhosamente como muçulmanos ismailis, segundo a nossa interpretação específica da fé e da história islâmicas. Mas também sentimos uma sensação de pertença a todo o mundo muçulmano, aquilo a que chamamos Umma. Dentro da Umma, a diversidade de identidades é imensa - maior do que a maioria das pessoas imagina - com diferenças baseadas na língua, na história, na nacionalidade, na etnia e numa variedade de vínculos locais. Mas ao mesmo tempo observo uma sensação de vínculo global significativo a crescer no seio da Umma.
Quando vemos a questão da identidade humana à luz deste contexto, vemos que a própria diversidade pode ser vista como uma dádiva. A diversidade não é um motivo para erguer muros, mas sim para abrir janelas. Não é um fardo; é uma bênção. É óbvio que no final temos de compreender que viver com a diversidade é um processo desafiante. É um erro pensarmos que vai ser fácil. O trabalho do pluralismo é um constante trabalho em curso.
Algum desse trabalho será realizado nas nossas escolas. Aquilo a que chamei Ética Cosmopolita não é algo que nasce connosco, mas sim algo que deve ser aprendido. Da mesma forma, o Instituto para a Cidadania Canadiana, com a liderança inspiradora de Adrienne Clarkson e John Ralston Saul, tem trabalhado para dar às pessoas que chegam ao Canadá um sentimento de pertença. Mas este não é um processo que se gere a si mesmo. Requer planeamento, requer persistência e um pensamento sempre renovado. É um trabalho que nunca está terminado.
Enfim, a promoção da causa da Cidadania Global não é apenas uma questão de construir sociedades saudáveis e diversificadas, mas também de as manter. Irão surgir novos desafios inevitavelmente. A Presidente do Supremo Tribunal do Canadá, a Muito Honorável Beverly McLachlin, falou acerca desses desafios no ano passado, quando proferiu a Palestra anual do nosso Centro Global pelo Pluralismo. Ela destacou o facto de uma sociedade cosmopolita precisar, em continuidade, de procurar o equilíbrio entre a diversidade saudável e a coesão social. Para conseguir isso, ela referiu ser necessário o respeito pela dignidade humana, umas instituições judiciais fortes e um ambiente institucional pluralista.
Para mim, este último fator exige uma sociedade civil bastante diversificada - um leque salutar de organizações privadas dedicadas a fins públicos. Para o pluralismo prosperar será necessária uma integração bem-sucedida das diversas instituições e uma liderança diversificada.
Estas são apenas alguns pensamentos que me ocorrem quando olho para o futuro da Cidadania Global. Resumindo, os desafios serão variados e constantes. Que irão eles exigir de nós? Uma pequena lista deverá incluir estes pontos fortes: um sentimento vital de equilíbrio, uma elevada capacidade de compromisso, mais do que um pouco de paciência, um grau apropriado de humildade, uma boa dose de misericórdia e, é claro, uma genuína abertura às diferenças humanas.
Este será um trabalho duro. Que nunca ficará concluído. Mas não existe trabalho mais importante do que este.
Obrigado.