Por Sua Alteza o Aga Khan, Evora, Portugal · 12 fevereiro 2006 · 11 Min
Presidente Sampaio, Reitor Manuel Patrício, Professor Adriano Moreira, Excelências, Distintos Convidados, Senhoras e Senhores
É para mim uma grande honra receber este convite para estar presente aqui hoje diante de tão estimada audiência para falar sobre um tema tão relevante. O nosso título fala de sociedades que são em simultâneo pluralistas e pacíficas -- um objectivo que é importante mas também difícil de atingir. Pois até os nossos esforços para conciliar estabilidade com modernidade parecem estar em constante disrupção.
Algumas destas rupturas provêm das novas tecnologias -- desde os blogs da internet à bio-genética. Outros surgem da natureza -- de padrões climatéricos em mudança ou vírus mutantes. Outros surgem ainda de transformações sociais -- novos padrões de vida familiar -- e enormes fluxos migratórios de pessoas.
Os títulos dos jornais relembram-nos diariamente as crescentes tensões: Desordens civis em países tão prósperos como a França e a Austrália; o infortúnio das vítimas de furacões no Luisiana e as vítimas do tremor de terra no Paquistão; a utilização da energia nuclear, o sentimento de impotência diante do sofrimento em locais como Darfur.
O planeta torna-se cada vez mais populoso e os seus recursos cada vez menos abundantes. O fosso entre ricos e pobres alarga-se. Pessoas de diferentes partes do mundo manifestam-se contra estes males. Mas a mudança, quando chega, é dolorosamente lenta, e às vezes parece que estamos a regredir.
Eu devo também mencionar aqui as notícias desta última semana -- que revelam o alargamento do fosso entre as sociedades Islâmica e Ocidental. E o que despoletou estes acontecimentos não foi acção militar ou falha diplomática, mas o poder de imagens dos media -- caricaturas profundamente ofensivas -- que ofenderam profundamente mil milhões e quatrocentos mil Muçulmanos de todas as partes do mundo -- incluindo eu próprio.
A pergunta que coloco -- à medida que vou lendo todas estas notícias -- é esta: Porque é que os líderes políticos e civis, da mesma forma em nações ricas e pobres, não conseguem desenvolver a visão e mobilizar a vontade para confrontar estes desafios de forma mais eficaz?
O que torna esta sensação de impasse ainda mais perturbadora é que muitas vezes ela representa o falhanço da democracia. Durante muitos séculos, era convicção de pessoas esclarecidas que as sociedades só começariam a enfrentar os seus problemas quando se tornassem democráticas. A maior barreira ao progresso, diziam eles, era o facto de que os Governos apenas ouviam uma minoria privilegiada, ao invés de ouvirem as vozes de muitos. Se ao menos pudéssemos avançar com a marcha da democracia, argumentavam eles, então uma agenda progressiva seria inevitavelmente levada a cabo.
Mas não estou certo de que uma análise como esta se possa manter por muito mais tempo. Na última metade de século, temos assistido a processos ostensivos de reforma democrática -- desde o desaparecimento gradual do colonialismo na metade do século passado até à queda da cortina de ferro. Mas apesar deste aparente progresso, os resultados têm sido frequentemente desapontadores.
Dificilmente consigo enumerar a variedade de governos que visitei ao longo das últimas cinco décadas -- desde os mais autocráticos até aos mais participativos. Frequentemente, os governos mais democráticos eram os mais eficazes e responsáveis. Mas isto não era verdade de forma consistente -- e eu tenho vindo a aperceber-me de que esta verdade é cada vez menos frequente. De facto, quase quarenta por cento das nações-membro das Nações Unidas são hoje catalogadas como “democracias falhadas”.
Democracia e progresso nem sempre andam lado a lado -- e a crescente ameaça dos “Estados Falhados” pode ser frequentemente descrita como “o Falhanço da Democracia”.
Frequentemente, os falhanços da democracia emergem da pura incompetência. É pedido às populações que votem em temas complexos. Candidatos escondem os seus pontos de vista e distorcem as posições dos seus oponentes. Jornalistas transmitem retóricas superficiais e realidades deturpadas. Pessoas são designadas para cargos que não conseguem exercer -- mas raramente são responsabilizadas.
A corrupção para alguns torna-se numa forma de vida. Entretanto, os media transmitem às audiências o que elas querem saber e não o que deviam saber. E o que demasiadas pessoas hoje querem não é informação -- mas sim entretenimento.
As rupturas são não só institucionais, mas também pessoais. Os sistemas democráticos oscilam entre demasiados equilíbrios e confirmações -- e tão poucos. Nos parlamentos, em particular, frequentemente não existem os conhecimentos e a estrutura para se lidar com problemas complexos -- e são frequentemente demasiado faccionados ou demasiado subservientes para sustentar um ponto de vista coerente.
Por todas estas razões, as democracias frequentemente tomam más decisões. E quando as democracias são ineficazes, as populações desencantadas são tentadas noutras direcções.
A América Latina é um dos locais onde se pensava que a democracia estaria em expansão, nos anos mais recentes. No entanto, o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas reporta que 55% dos inquiridos num estudo levado a cabo em 18 países da América Latina, suportariam uma lei autoritária se esta trouxesse progresso económico.
O desafio da democracia competente é, por esse motivo, um problema central dos nossos tempos. Correspondermos a esse desafio deve ser uma das nossas prioridades.
O desafio da renovação democrática tem sido fortemente exacerbado por um outro desenvolvimento que também é referido no título deste simpósio. Refiro-me à rápida proliferação das populações cosmopolitas. O mundo tem-se tornado, de facto, mais pluralista -- mas o espírito não tem acompanhado esse processo. Os padrões sociais “cosmopolitas” não foram ainda enquadrados naquilo que eu chamaria de “ética cosmopolita”.
As pessoas cruzam-se e misturam-se, lado a lado, a um nível nunca antes imaginado. Ondas de migração mudam inevitavelmente os ritmos, cores e sabores das comunidades anfitriãs.
Cerca de 150 milhões de imigrantes legais vivem fora do seu país natal, a que se somam incontáveis milhões que imigraram ilegalmente.
Estas tendências vão continuar. A globalização dissolveu os laços estreitos entre comunidade e geografia. As oportunidades económicas -- para ricos e pobres da mesma forma -- pode estar numa terra distante. Cerca de 45 milhões de jovens entram no mercado de emprego no mundo em desenvolvimento, cada ano -- mas não existem empregos suficientes para todos no seu país de origem. Em simultâneo, os refugiados da guerra e dos conflitos civis juntam-se a esta mistura.
A imigração é simultaneamente uma benção e um problema. Os imigrantes representam agora dois terços do crescimento da população nos 30 estados-membro da OCDE, onde uma força de trabalho envelhecida exige novos jovens trabalhadores. Entretanto, as remessas de dinheiro enviado para casa pelos imigrantes ascendem a 145 mil milhões de dólares americanos por ano -- e geram quase 300 mil milhões em actividade económica -- mais do que é disponibilizado pela Ajuda de Desenvolvimento Internacional ou pelo Investimento Directo Externo.
Ao mesmo tempo, as comunidades imigrantes conseguem de forma perspicaz utilizar os recursos públicos e privados. A resultante competição com os residentes mais antigos pode causar ressentimento e hostilidade. Mais de metade dos respondentes a estudos de opinião europeus têm uma visão negativa da imigração. O chamado “choque de civilizações” é um perigo simultaneamente local e global.
Mas não é necessário que assim seja. E nem sempre foi assim ao longo da história. Sim -- o choque cultural tem sido um tema relevante na história humana. Mas também a cooperação inter-cultural o tem sido.
Este país e esta universidade conhecem, pela sua própria história, como as culturas Islâmica e Cristã se encontraram nesta parte do mundo, há muitos séculos atrás -- e como essa interacção foi enriquecedora para ambas as tradições. Este é um bom momento e o local certo para enfatizar as múltiplas bençãos que surgem quando as pessoas decidem parar de gritar umas com as outras, e ao invés, decidem começar a ouvir e a aprender.
A interacção entre culturas tem sido central nas minhas actividades nos últimos 50 anos, desde que me tornei Imam dos Muçulmanos Shia Ismaili. A ética do Islão constrói pontes entre fé e sociedade, e por isso as minhas responsabilidades como líder espiritual são acompanhadas por um grande envolvimento nas temáticas do bem estar comunitário.
Os Ismailis são, eles próprios, uma comunidade culturalmente diversa. Vivem -- como minorias -- em mais de 25 países, em primeiro lugar no mundo em desenvolvimento, mas também na Europa -- incluindo Portugal -- e América do Norte. A experiência multi-cultural dos Ismailis é reflectida na abordagem da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento -- trabalhando com uma vasta rede de parceiros para ajudar os desfavorecidos, independentemente da sua origem. Por exemplo, estamos satisfeitos que em Portugal o nosso trabalho tenha sido recentemente formalizado em acordos de cooperação com o Governo Português e com o Patriarcado de Lisboa.
Nesta discussão sobre a diversidade cultural, permitam-me que mencione a nossa recente parceria com o Governo do Canadá, para a criação de um novo Centro Global para o Pluralismo, em Ottawa. Este Centro irá capitalizar a experiência Ismaili e também a do Canadá, onde uma sociedade pluralista floresce -- e onde -- em contraste com a opinião mundial, 80% da população considera a imigração como um desenvolvimento positivo.
Ao honrarem-me hoje, honram a tradição que represento, e, ao fazê-lo, estão a renovar uma inspiradora história de afecto inter-cultural e respeito inter-cultural, de dependência e reforço mútuos.
Isto leva-me à minha questão central. O que é que nós podemos fazer para alimentar democracias saudáveis e competentes, em contextos antigos, onde a democracia se esgotou e em novos contextos, onde foi recentemente plantada? Eu faria três sugestões -- sendo que cada uma delas está reflectida na experiência desta universidade.
Em primeiro lugar, temos de fortalecer a nossas instituições civis. Isto significa tomar a consciência de que uma sociedade democrática exige muito mais do que um governo democrático. Os governos por si só não conseguem fazer com que a democracia funcione. A iniciativa privada é também essencial, incluindo o papel vital daquelas instituições que colectivamente são denominadas de “sociedade civil”.
Quando falo em sociedade civil, falo de um conjunto de instituições que operam numa base voluntária e privada -- mas que são conduzidas por motivações públicas. Refiro-me às instituições dedicadas à educação, à cultura, à ciência e à investigação. Refiro-me também às associações comerciais, profissionais e éticas, bem como às entidades dedicadas à manutenção da saúde, à protecção do ambiente e à cura de doenças. As instituições religiosas são centrais à sociedade civil -- como o são também as instituições dos media.
Por vezes, estamos tão preocupados com o Governo e com a política, que negligenciamos a importância das instituições civis. Não estou a sugerir que ignoremos a política -- mas estou a sugerir que pensemos para além das nossas preocupações políticas. Um sector civil em florescimento é essencial na renovação da promessa de democracia.
O segundo pilar da democracia que gostaria de mencionar é a educação -- rigorosa, responsável e relevante. Temos de fazer um melhor trabalho na formação de líderes e na formação de instituições para que correspondam aos testes mais elevados de competência e elevados padrões de excelência. Isto significa irmos para além da noção de que uma melhor educação significa uma escola mais acessível -- um melhor acesso à educação formal. Devemos fazer acompanhar a nossa preocupação com a quantidade, com uma maior preocupação com a qualidade. Será que os currículos que ensinamos são relevantes para os complexos problemas do futuro? Ou estamos ainda a proporcionar uma educação do século XX, para líderes do século XXI?
O nosso sistema de Universidades Aga Khan e Academias Aga Khan estão a ir ao encontro destas questões, à medida que vão avançando no conceito de meritocracia no mundo em desenvolvimento e na manutenção de padrões mundiais de elevada qualidade, o que contribuirá para que os nossos estudantes se esforcem continuamente no seu desenvolvimento em vez de os limitar subestimando-os.
Durante muito tempo, as nossas escolas ensinaram demasiadas matérias como sub-temas de compromissos dogmáticos. O aprofundamento e a compreensão das teorias económicas era vista como uma escolha ideológica -- e não como exercícios de resolução de problemas científicos. Demasiadas vezes, a educação tornou os nossos estudantes menos flexíveis -- confiantes ao ponto de se tornarem arrogantes, de tal forma que tinham todas as respostas -- em vez de mais flexíveis -- humildes numa abertura ao longo das suas vidas para colocar novas questões e obter novas respostas.
Um importante objectivo da educação de qualidade é dotar cada geração de meios para participar de forma efectiva, naquilo que tem sido denominado de “a grande conversa” dos nossos tempos. Isto significa, por um lado, não ter medo da controvérsia. Mas significa também ser sensível aos valores e pontos de vista dos outros.
Isto traz-me de volta às actuais notícias. Pois tenho de acreditar que é a ignorância que explica a publicação daquelas caricaturas, que trouxe tanta dor às populações Islâmicas. Gostaria de chamar a atenção para o facto de que o jornal dinamarquês onde esta controvérsia teve origem, reconheceu, numa recente carta de pedido de desculpas, que não estava consciente das sensibilidades associadas a este tema.
À luz do referido, talvez a controvérsia possa ser descrita não como um choque de civilizações e mais como um choque de ignorância. A explicação alternativa seria que a ofensa foi intencional -- e neste caso estaríamos a confrontar-nos com uma maldade, de outra natureza. Mas mesmo que se atribua o problema à ignorância, não é de forma alguma minimizar a sua importância. Num mundo pluralista, as consequências da ignorância podem ser profundamente prejudiciais.
Talvez tenha sido também a ignorância que permitiu que tantos participantes nesta discussão tenham confundido liberdade com licenciosidade -- dando a entender que a pura inexistência de limites ao impulso humano pode constituir um enquadramento moral suficiente. Não quer isto dizer que os governos deviam censurar o discurso ofensivo. E a resposta também não está em palavras ou acções violentas. Mas estou a sugerir que a liberdade de expressão é um valor incompleto, a não ser que seja usado de forma honrada, e que as obrigações de cidadania, em qualquer sociedade, devem incluir um compromisso com uma expressão informada e responsável.
Se conseguirmos assumir um compromisso com esse objectivo, então a actual crise pode tornar-se numa oportunidade educativa -- uma ocasião para promover a consciencialização e o alargamento de perspectivas.
Ignorância, arrogância, insensibilidade -- estas atitudes estão bem cotadas entre os grandes inimigos públicos dos nossos tempos. E o empreendimento educativo, no seu melhor, pode ser um antídoto eficaz para todos eles.
Permitam-me então que avance para a minha terceira sugestão para fortalecer a democracia num mundo pluralista -- a renovação do compromisso ético.
Os processos democráticos são presumivelmente sobre a partilha de poder, alargando o número daqueles que ajudam a formar as decisões sociais. Mas essa partilha, por si só, tem pouco significado se estiver distanciada dos objectivos para o qual o poder é utilizado no final.
E falar dos objectivos finais, é entrar no domínio da ética. Quais são os nossos objectivos últimos? Que interesses procuramos servir? Como, num tempo crescentemente cínico, podemos nós inspirar pessoas para um novo conjunto de aspirações -- para atingirem para o que vai para além do extensivo materialismo, do novo relativismo, do individualismo egoísta, e do tribalismo re-emergente.
A procura da justiça e da segurança, a luta pela igualdade de oportunidades, a busca pela tolerância e harmonia, pela dignidade humana -- estes são imperativos morais sobre os quais temos de reflectir e exercer numa base diária.
No domínio ético -- tal como no domínio educativo -- um dos grandes obstáculos é a arrogância. Mesmo o ressurgimento de sentimentos religiosos -- que deveriam ser uma força positiva -- podem-se tornar numa influência negativa quando se tornam em verdades absolutas. Todas as grandes religiões do mundo alertam para este excesso -- no entanto, em nome dessas mesmas religiões, demasiados são tentados a exercerem o papel de Deus -- em vez de reconhecerem a sua humildade perante o Divino.
Um elemento central numa perspectiva verdadeiramente religiosa, parece-me, é a qualidade da humildade pessoal -- um reconhecimento de que, por muito que nos esforcemos, estaremos sempre aquém dos nossos ideais, por muito que escalemos, existirão sempre montanhas inexploradas e misteriosas por descobrir. Significa reconhecer a nossa própria humanidade -- logo as nossas limitações humanas. É nesse reconhecimento, parece-me, que reside a nossa melhor protecção contra falsas profecias e dogmatismos que dividem.
Um sentido aprofundado de compromisso espiritual -- e o correspondente enquadramento ético -- será um requisito central se quisermos encontrar o nosso caminho através dos campos de minas e das areias movediças da vida moderna. O fortalecimento das instituições religiosas deveriam ser uma parte vital deste processo. Na verdade, liberdade de religião é um valor crítico numa sociedade pluralista. Mas se a liberdade de religião se deteriora e se transforma numa liberdade da religião -- então as sociedades perder-se-ão numa paisagem pouco prometedora e vazia -- sem bússola, sem mapa e sem sentido de direcção.
Aquilo para que chamo a atenção, em suma, é para uma sensibilidade ética que pode ser partilhada pelas diferentes linhas religiosas ou crenças, e que pode alimentar uma perspectiva moral universal.
Em conclusão, então, peço-vos que reflictam sobre estes três requisitos: uma nova ênfase nas instituições civis, um maior rigor na excelência educativa, e um renovado compromisso com padrões éticos. Pois todas estas são formas através das quais podemos encorajar um clima de pluralismo positivo no nosso mundo -- e assim ir ao encontro da actual crise da democracia.
Pois apenas num clima como esse, podemos olhar para as nossas diferenças como uma fonte de riqueza, e não como uma fonte de divisão. E apenas num clima como esse, podemos ver “o outro”, não como uma maldição ou ameaça, mas como uma oportunidade e uma benção -- quer “o outro” viva do outro lado da rua -- ou do outro lado do mundo.
Obrigado.