Hoje mais do que nunca, a prática convencional da arquitetura enfrenta uma crise de relevância. O reconhecimento na profissão permanece bastante centrado a nível global, baseado num punhado de obras extravagantes que produzem objetos esteticamente agradáveis. No entanto, estes projetos parecem deslocados perante as condições em que vive hoje a maioria da população do planeta.
Estas condições incluem a violência resultante das alterações climáticas, aumento das desigualdades económicas e digitais, epidemias, crescentes restrições às liberdades, polarização emergente, guerras ferozes, grandes vagas de deslocamentos populacionais e - no meio de tudo isto - a difícil tarefa de viver com dignidade.
Para que a arquitetura mantenha a sua relevância em relação aos desafios de hoje, é imperativo que a profissão se reposicione em relação aos desafios humanos, sociais e ambientais dos dias de hoje. Refletindo esta necessidade de reposicionamento, o Grande Júri do Prémio Aga Khan para a Arquitetura de 2019 procurou escolher projetos que questionem a prática convencional da profissão e, mais importante, que estabeleçam caminhos inspirados e inovadores através dos quais os arquitetos possam enfrentar os problemas sociais e envolver-se com eles de forma substancial.
Estes caminhos exigem uma mudança de tónica desde o projeto aos processos de design. Estes exigem que os arquitetos sejam reconhecidos tanto pelas suas competências de design como pelo seu papel de dinamizadores que trabalham em estreita colaboração com as comunidades. Deste modo, os arquitetos podem ajudar as pessoas e agências a transformar as suas aspirações em algo material - independentemente dos desafios locais, recursos limitados e condições políticas restritivas.
Para este fim, o Grande Júri esforçou-se para realçar o processo sem ignorar a excelência arquitetónica. Na verdade, o Júri considerou a qualidade do design de um projeto vencedor como um dado adquirido. Também considerou um dado adquirido a pegada ambiental de cada projeto, mas esforçaram-se para reconhecer projetos que tivessem sido capazes de ampliar ainda mais a sua relevância - que sejam um exemplo a seguir e uma garantia fiável que possa criar ondas no longo prazo, para além do momento da intervenção física.
O Grande Júri também prestou bastante atenção à liderança, às colaborações, à abertura e à boa administração. Estas características levaram o Júri a focar-se nos mecanismos institucionais que produziram a arquitetura, os modos de governo através dos quais foram organizados, o trabalho em equipa que apoiou a sua conceção e realização e a sua capacidade de incluir vozes da comunidade e desafios sociais mais vastos.
Dada a sua própria demografia, o Grande Júri também considerou importante examinar o modo como os projetos afetaram as gerações mais jovens de pelo menos duas formas: [1] as oportunidades que os projetos criaram para arquitetos e designers emergentes se envolverem em processos e intervenções de construção que tenham tido impacto nos ambientes naturais e construídos, e [2] a organização programática e arquitetónica dos edifícios e o modo como são capazes de fomentar uma aprendizagem multigeracional inclusiva.
Estes critérios podem ser aplicados de forma igualitária aos 20 projetos finalistas que foram escolhidos durante a primeira reunião do Grande Júri em Janeiro. Nesta reunião, o Grande Júri selecionou, para serem incluídos na lista de finalistas, várias intervenções de designers iniciantes que de forma ambiciosa se atribuíram a si próprios a tarefa da conceção, da angariação de fundos e do design de intervenções comunitários, como uma biblioteca pública no meio de uma kampung e uma escola temporária num campo de refugiados. Também selecionou arquitetos mais experientes que reconheceram a centralidade da sua orientação no seio das suas comunidades profissionais locais.
A escolha final pode ter pendido compreensivelmente para designers mais experientes, mas ao longo do processo, foi mantido um forte compromisso para com processos de design inclusivos e intervenções arquitetónicas que destacassem a pluralidade cultural e a responsabilidade intergeracional.
Os temas dominantes que surgiram, e que definem os vencedores do Ciclo 2019 do Prémio Aga Khan para a Arquitetura, são três: [1] património vivo, [2] resiliência ecológica e recuperação, e [3] terrenos dinâmicos e inclusivos.
Estes temas estão integrados em seis projetos que abrangem três continentes. Incluem uma intervenção no património urbano, um museu nacional, uma escola flutuante, salas de aula e corredores de uma universidade, um centro ecológico e um ambicioso programa para introduzir espaços públicos em centenas de localidades.
Os temas estão refletidos no vocabulário das deliberações do Grande Júri, que fez alusão consistentemente às noções de ancoragem, identidade cultural, adaptabilidade, design de baixo impacto, meio ambiente, colaboração, objetivo comunitário, capacitação, liderança, dignidade, hibridismo e bem público. O Grande Júri voltará a estas noções quando ler as citações de cada um dos projetos vencedores.
Em jeito de conclusão, o Grande Júri gostaria de reconhecer o valioso empenho demonstrado na seleção dos seus membros, o que permitiu reunir um rico conjunto de vozes de várias áreas. Os membros do Júri reuniram em duas ocasiões, tendo cada uma das sessões durado quase uma semana, e todos consideraram a experiência incrivelmente enriquecedora e estimulante, especialmente ao ouvir as reações conforme as respetivas disciplinas e experiências de cada membro do grupo. O Júri também gostaria de reconhecer o notável esforço dos avaliadores, cujas visitas ao terreno permitiram uma análise completa de todos os 20 projetos e ajudaram a eliminar projetos que, de outra forma, teriam passado tranquilamente à fase final, nesta era de realidade virtual e notícias falsas. Os membros do Grande Júri agradecem este esforço e reconhecem enormemente o rigor e o cuidado com que este processo de seleção dos prémios foi organizado.
Os seis vencedores do Prémio Aga Khan para a Arquitetura de 2019 são:
Revitalização de Muharraq, Bahrein
Museu da Palestina, Birzeit, Palestina
Projeto Arcadia de Educação, Kanarchor Sul, Bangladesh
Unidade de Ensino e Investigação da Universidade Alioune Diop, Bambey, Senegal
Centro Wasit de Zonas Húmidas, Sharjah, Emirados Árabes Unidos
Programa de Desenvolvimento de Espaços Públicos, República do Tartaristão, Federação Russa
Elizabet Diller (diretora), Anthony Kwamé Appiah, Meisa Batayneh, Sir David Chipperfield, Nondita Correa Mehrotra, Edhem Eldem, Mona Fawaz, Kareem Ibrahim, Ali M. Malkawi
Genebra, 6 de Junho de 2019
Revitalização de Muharraq
Muharraq, Bahrein
A Revitalização de Muharraq responde criativamente aos desafios do património cultural urbano negligenciado e da vida social. Tendo por base a tradição do Bahrein no comércio de pérolas, este projeto despertou um sentimento local de orgulho ao incutir uma nova vida cultural numa área urbana deteriorada
É importante notar que a revitalização é baseada num conjunto audacioso de intervenções públicas e privadas usando uma linguagem arquitetónica contemporânea e dinâmica, ainda que discreta.
A restauração dos edifícios existentes e a introdução de projetos contemporâneos bem desenhados oferecem um local para atividades culturais organizadas. Usando uma rede de iluminação elegante de apoio à circulação, a “Rota das Pérolas” guia os visitantes pelo património da zona de uma forma socialmente sensível.
A excelente, mas acessível, modernização dos espaços públicos oferece à comunidade local oportunidades de interação social. O projeto criou com sucesso uma plataforma aberta na qual os cidadãos se podem envolver de forma ativa. Os profissionais de diferentes contextos podem interagir e colaborar. As parcerias público-privadas e as empresas locais podem desenvolver-se.
O Programa alcança, assim, um processo de revitalização urbana que estabelece um equilíbrio entre a melhoria da qualidade de vida dos residentes e a otimização da experiência do visitante.
Estas intervenções integradas, progressivas, evolutivas, abertas e baseadas em processos - que se estendem por quase duas décadas - demonstram a perseverança e a visão de longo prazo dos instigadores do projeto. Estes recordam que a institucionalização, a construção das capacidades locais e a busca do melhor possível em vez do perfeito - são as chaves para alcançar um impacto sustentável.
Museu da Palestina
Birzeit, Palestina
O Museu da Palestina destaca-se como uma poderosa manifestação de uma identidade cultural sob pressão na interseção entre terra e arquitetura, natureza e pessoas. Ao colocar os tradicionais socalcos agrícolas da região no centro da sua conceção, o projeto coloca a terra no centro da sua missão de curadoria.
Este conceito é levado a cabo em todo o design do edifício, que fica no topo de uma colina com vista para um rico jardim botânico com espécies indígenas, e de frente para o mar distante e inacessível e para cidades da histórica Palestina.
Na sua integração na topografia natural, o edifício adota a antiga linguagem arquitetónica da região, mas fá-lo através de uma linguagem geométrica moderna. Equilibra a dependência de materiais locais com a introdução de técnicas inovadoras de pormenorização.
Programaticamente, o edifício exibe exposições regulares que documentam a história, culturas e ambições dos povos da Palestina. As suas atividades estão interligadas com o vibrante ambiente educacional da vizinha Universidade de Birzeit.
A própria existência do edifício, o seu nível de pormenorização e a perfeição do seu design e especificações - construídas apesar da situação de ocupação e cerco - podem ser entendidos como nada menos do que um ato de esperança para as gerações atuais e futuras.
Projeto Arcadia de Educação,
Kanarchor do Sul, Bangladesh
Numa altura em que se assiste a uma subida do nível do mar, esta modesta escola em bambu ilustra como se pode construir uma solução viável e acessível com materiais disponíveis localmente.
A abordagem de construção do infantário com três salas de aula passou por desenhar uma estrutura que se elevasse com o nível da água do rio e se adaptasse ao ambiente - sem alterar as condições naturais do local e permitir o uso ininterrupto do edifício ao longo de todo o ano. O paradigma aqui observado no uso do seu conhecimento profissional por parte do arquiteto é assinalável, - pensando de forma ousada e adaptando os métodos tradicionais - especialmente no sentido em que a construção é modesta e direta, sem fetichizar a sua elaboração.
Este projeto de baixo custo e baixo impacto, específico em relação ao local na sua abordagem tecnológica mas de solução global, foi o resultado do trabalho em equipa entre o arquiteto, o cliente e o construtor, tendo cada um deles demonstrado resiliência e inovação ao abordar a responsabilidade social de construir a escola.
A modéstia do programa, o uso de materiais e o método de construção são elementos de sucesso na elaboração desta escola anfíbia através de um trabalho em equipa experimental e colaborativo. Apesar de ser simples e compacto, o projeto oferece solução a questões complexas - de flutuabilidade, de ancoragem contra a corrente do rio e de gestão de resíduos.
O Projeto esforça-se para melhorar a vida das pessoas, contribui para o desenvolvimento social e económico e oferece um caminho para solucionar questões globais ao nível do aumento dos níveis da água e do acesso à educação nas comunidades rurais.
Unidade de Ensino e Investigação da Universidade Alioune Diop
Bambey, Senegal
Dado que os edifícios têm um impacto direto nas alterações climáticas e no meio ambiente, o Edifício de Conferências da Universidade Alioune Diop é um exemplo louvável de como os princípios fundamentais de sustentabilidade e de eficiência energética se podem traduzir num design bem integrado e elegante com baixo impacto na área circundante.
Estes princípios, que foram utilizados no início do desenvolvimento do conceito, foram norteados por informações acerca de dados climáticos específicos necessários para otimizar o revestimento do edifício. Estes também incluíram o uso de energia, a destruição de material e a poluição da água. A estratificação, a gestão da água e o uso de tecnologias de construção e materiais também foram incorporados no projeto.
A organização do edifício está estruturada em torno de um generoso espaço à sombra no lado norte do edifício, permitindo a interação social e uma circulação linear bem organizada. Os elementos de construção têm várias funções. Por exemplo, os tijolos leves permitem a ventilação e refletem a luz direta do sol.
O conforto, o uso de energia e o legado ambiental do edifício estão bem representados neste projeto. O edifício demonstrou como um bom design que integra princípios ambientais pode resultar em espaços de qualidade que permitem que um edifício esteja vinculado a condições locais ambientais e específicas do local.
A tecnologia de construção também permite a sua repetição e a sua possível utilização em outros edifícios. Os princípios e processos de sustentabilidade utilizados têm o potencial de funcionar como modelos para a implementação de projetos com consciência ambiental.
Centro Wasit de Zonas Húmidas
Sharjah, Emirados Árabes Unidos
O Centro Wasit de Zonas Húmidas destaca-se como um projeto colaborativo notável e verdadeiramente original que combina a excelência arquitetónica com um profundo compromisso com os imperativos ecológicos.
Cumpre igualmente objetivos educacionais e recreativos altamente meritórios. Menos de quatro anos após a sua conclusão, um grande número de visitantes locais, especialmente crianças em idade escolar, confirmam o sucesso global do projeto e o seu impacto positivo num contexto social mais amplo.
Talvez os aspetos mais marcantes e exemplares deste projeto se encontrem nas suas características menos convencionais. Arquitetonicamente falando, está empenhado em desaparecer de vista. Funde-se com o ambiente natural de formas que respeitam a integridade do local - uma maneira maravilhosa de nos lembrar que o mérito arquitetónico reside cada vez mais na capacidade de uma estrutura se combinar com um ambiente, em vez de desafiá-lo.
Da mesma forma, a principal contribuição do projeto para o seu ambiente urbano está na recuperação de cerca de 8 hectares de terra abandonada, desviando-a das tentações do desenvolvimento imobiliário e valorizando-a enquanto uma forma de capital natural.
Ao fazer isto, o Projeto abre um poderoso precedente que incentiva o desenvolvimento de baixo impacto e ambientalmente consciente numa região conhecida pela sua tendência em ir na direção oposta.
Programa de Desenvolvimento de Espaços Públicos do Tartaristão
República do Tartaristão, Federação Russa
O sucesso deste Programa, impressionante na sua ambição de melhorar a qualidade do espaço público em toda a República do Tartaristão, reside na sua abordagem inclusiva ao processo de implementação. Os projetos, propositadamente localizados em várias comunidades, procuram aumentar a importância do espaço comunitário.
É importante compreender o papel do público nestes projetos - ao reforçar o sentido de comunidade, a identidade das aldeias, vilas e cidades, e o papel que desempenham no desenvolvimento da sociedade civil e da qualidade de vida.
O programa também está projetado para compensar os espaços mal concebidos e muitas vezes ordenados de forma inadequada, forjados por um planeamento centralizado durante o período soviético. A iniciativa também promove a importância da natureza, mesmo em locais definidos pelo seu caráter industrial, trabalhando também para proteger o bem público das tendências e interesses da propriedade privada.
A dimensão e a diversidade dos 185 projetos concluídos até ao final de 2017 exigiram diferentes tipos de respostas e ideias. É evidente que o sucesso a longo prazo e a sustentabilidade do projeto não residem apenas na sua visão ampla e na sua liderança política, mas também no processo de concretização, o qual deu atenção ao compromisso e ao diálogo, ao envolvimento e ao encorajamento de jovens arquitetos e designers e à participação dos utentes e da comunidade.