Não disponível · 3 janeiro 2019 · 8 Min
Escrito por Ayesha Daya, jornalista que escreve para a AKDN e TheIsmaili.org
Parte um: Objetivo.
O Século XXI começou com uma onda de novos projetos de construção que reformularam a paisagem de muitos países muçulmanos. Das zonas costeiras da Península Arábica às estepes do Cazaquistão, têm vindo a ser construídas ilhas artificiais e estádios de futebol com ar condicionado, e serem criadas novas capitais à medida que os países usam os avanços na tecnologia e engenharia modernas para eliminar as condicionantes do seu ambiente natural.
À medida que estes novos projetos expandem o âmbito de possíveis intervenções no ambiente construído, existe a preocupação de que algumas ambições arquitetónicas e tecnológicas possam pôr em causa a questão da sustentabilidade.
“Vivemos numa 'sociedade da espetacularidade' - a autenticidade tem menos que ver com a qualidade e mais com o apelo visual, o estranho, o extraordinário”, diz Amer Moustafa, Professor Associado de Arquitetura na Universidade Americana de Xarja. “Por exemplo, a entrada no Livro dos Recordes do Guinness é uma conquista muito assinalável.”
“Não estamos a criar boa arquitetura ou locais inspiradores”, continua, “estamos a produzir bens e propriedades imobiliárias que valorizam a competitividade ao nível do valor materialista e do contravalor das coisas, e não ao nível da sua qualidade ou sustentabilidade. A arquitetura por natureza deve ser sustentável: um bom design minimiza o impacto na natureza, nas outras pessoas."
É precisamente esta questão de “bom design” que o Prémio Aga Khan para a Arquitetura tem vindo a debater desde a sua criação em 1977, e continuará a debater na cerimónia deste ano do prémio que se realiza em Setembro, em Lisboa. O prémio, no valor de 1 milhão de dólares, é concedido a projetos que estabeleçam novos padrões de excelência e respondam às necessidades e aspirações das sociedades nas quais os muçulmanos tenham uma presença significativa, e procura inovações que respondam às necessidades específicas de um determinado ambiente, economia ou sociedade - os princípios fundamentais da sustentabilidade. Ao longo dos anos, tem vindo a celebrar projetos que inovam dentro das condicionantes do seu ambiente natural, desde torres de escritórios a torres de água, de museus a mercados, e em embaixadas, projetos de melhoria de bairros degradados, escolas e aglomerados habitacionais.
O estado da arquitetura na década de 1970
Durante grande parte do século XX, a prática arquitetónica no mundo industrializado foi dominada pelo Modernismo. Este movimento foi uma reação à ostentação do século anterior e reivindicava edifícios que fossem austeros, simples de replicar e projetados puramente para um uso funcional, numa celebração da importância para a vida moderna da funcionalidade e do uso da tecnologia. O movimento traduziu-se em estruturas de vidro e aço, como o Edifício Seagram, em Nova Iorque, construído na década de 1950 por Ludwig Mies van der Rohe, e o Congresso Nacional do Brasil, de Oscar Niemeyer, construído na década de 1960.
Entretanto, as outrora resplandecentes tradições arquitetónicas das sociedades muçulmanas haviam empalidecido com o início do colonialismo e as subsequentes tendências de modernização e ocidentalização. A escassez de arquitetos de culturas muçulmanas e com formação nessas tradições levou a que as elaboradas mesquitas, fortes, jardins e casas que em tempos representaram a grandeza daquelas sociedades - a Alhambra de Granada, o Taj Mahal em Agra, a Cúpula da Rocha em Jerusalém, a Mesquita Sulemaniye em Istambul, a Mesquita Al Azhar no Cairo, a praça Naqsh-e Jahan em Isfahan - deixassem de ser construídas.
Na década de 1970, a abordagem uniformizada do Modernismo - na qual os edifícios do Cairo podiam ser idênticos aos de Copenhaga - foi confrontada. Os críticos do modernismo dizem que, no geral, o movimento ignorava a singularidade dos locais, e os seus diferentes climas, materiais de construção e culturas. Como reação, começou a emergir o paradigma pós-moderno.
"O movimento pós-moderno, entre muitas outras reformas do modernismo, defendia um regresso à história como um meio de reinserir a arquitetura na consciência coletiva", diz Nasser Rabbat, Professor Aga Khan e Diretor do Programa Aga Khan para a Arquitetura Islâmica no Instituto de Tecnologia de Massachusetts. “O mundo islâmico, cujo envolvimento com a modernidade em geral tem sido, no mínimo, intermitente, encontrou no pós-modernismo uma forma de reafirmar a sua identidade arquitetónica autónoma e de se reconectar com o seu património pré-colonial."
Promover o debate através de um prémio
Em última análise, a arquitetura moderna não estava a conseguir responder às necessidades de sociedades muito díspares. Isto tornou-se uma preocupação para o 49.º Imam hereditário dos muçulmanos xiitas ismailis, que à época estava a expandir a rede de escolas e hospitais criada pelo seu avô nas diferentes áreas geográficas nas quais a comunidade ismaili estava presente.
Como consequência, Sua Alteza o Aga Khan reuniu um número de intelectuais - professores, arquitetos, historiadores - para pensar em novas formas de "proporcionar um melhor ambiente de reflexão para os arquitetos causarem menos danos e criarem melhores modelos", diz Farrokh Derakhshani, Diretor do Prémio.
“Um prémio serviria para divulgar progressos, criar conhecimento e partilhar esse conhecimento”, explica Derakhshani. “Os seminários realizados em cada ciclo do Prémio iriam discutir as questões da época, sendo publicadas monografias para a divulgação dos projetos vencedores e os debates promovidos pelos membros do grande júri de cada ciclo. Naquela época, não havia literatura sobre arquitetura da parte oriental do mundo."
Deste modo, em 1977, nasceu o Prémio Aga Khan para a Arquitetura.
Em conjunto com o Imam, o grupo que desenhou o prémio tornou-se o seu primeiro comité diretivo: Nader Ardalan, Garr Campbell, Sir Hugh Casson, Charles Correa, Hassan Fathy, Oleg Grabar, Dogan Kuban e William Porter. Fathy, um arquiteto egípcio que reintegrou na construção de habitações locais o uso de designs e materiais tradicionais conhecidos por fornecer ventilação natural, recebeu o primeiro Prémio do Presidente, como reconhecimento pelo seu compromisso vitalício com a arquitetura no mundo muçulmano.
O Aga Khan reafirmou os objetivos do Prémio no seu discurso de abertura no seminário inaugural, realizado em Aiglemont, França, em 1978.
“Qual é o ambiente físico futuro que os muçulmanos deverão procurar obter para si e para as futuras gerações nas suas terras natais, instituições, locais de trabalho, casas, jardins e nas zonas que os rodeiem?", perguntou.
“Creio que a criação de um Prémio que promova, incentive e reconheça as obras e projetos de qualidade e interesse excecionais nas várias vertentes do nosso ambiente construído é uma contribuição valiosa e gratificante para a solução do problema”, continuou. “Para além disso, espero que muitos destes projetos venham a refletir o pensamento acerca dos aspetos práticos das economias, das populações e dos países que servem, sendo construídos com os recursos mais eficazes ao nível de custos e tendo em conta a sua manutenção.”
Processo rigoroso de seleção
Azim Nanji, professor de Estudos Islâmicos que deu aulas na Universidade de Stanford, fez parte do comité diretivo, que estabelece os critérios de elegibilidade para a submissão de projetos, e é responsável pelo programa internacional de seminários, palestras, exposições e publicações do Prémio, e membro do grande júri, que seleciona os projetos vencedores. O comité diretivo e o grande júri mudam a cada ciclo do prémio, a cada três anos.
"É um dos processos de seleção mais vigorosos em que já colaborei", diz Nanji. “Para mim, foi uma ótima experiência de aprendizagem assistir ao modo como os arquitetos se moviam entre os projetos construídos e o seu contexto - eles queriam perceber a forma como contribuíam para o desenvolvimento dessa sociedade. Isto mostra que o Prémio é muito mais do que apenas edifícios.”
Cada ciclo começa com uma solicitação para o envio de projetos. Os candidatos devem justificar pormenorizadamente a sua escolha de projeto e a forma como ela respeita os critérios e temas desse ciclo em particular. O projeto tem de estar em operação imprescindivelmente há pelo menos um ano.
Vários meses depois, quando terminar o prazo para as candidaturas - que ascendem a cerca de 400 projetos - o grande júri independente irá reunir-se durante cerca de uma semana para escolher uma lista final com cerca de 20 projetos. Uma equipa específica de especialistas irá visitar os locais para avaliar tecnicamente cada um dos projetos selecionados para a lista final e responder a perguntas do júri, compilando a sua avaliação num relatório de 5000 palavras. O grande júri reúne depois uma segunda vez para tomar a sua decisão final acerca dos vencedores do Prémio.
O Prémio já completou onze ciclos de atividade desde 1977, tendo distinguido 105 projetos até ao momento. Foi criada documentação acerca de mais de 8000 projetos de construção em todo o mundo.
“É mais internacional do que qualquer outro prémio, uma vez que cobre o mundo desenvolvido e em desenvolvimento, e tem vindo a cobrir o mundo em desenvolvimento desde a década de 1970, algo que nenhum outro prémio fez, pelo que este prémio representa um grande processo educacional” diz Hanif Kara, Professor de Prática de Tecnologia Arquitetónica na Faculdade de Design de Harvard, que vem colaborando com o prémio durante quase uma década. “Leva-nos a reformular a forma como pensamos na nossa própria disciplina. Abre a mente para aquilo que a arquitetura ainda não abordou, para a pesquisa que tem de ser feita.”
Esta é a primeira parte de uma história de duas partes, escrita pela jornalista Ayesha Daya para a AKDN e TheIsmaili.org, que explora os objetivos e o impacto do Prémio Aga Khan para a Arquitetura. Leia a conclusão aqui.