Não disponível · 3 janeiro 2019 · 12 Min
Escrito por Ayesha Daya, jornalista que escreve para a AKDN e TheIsmaili.org
Parte dois: Impacto
Durante os 36 anos desde a sua criação, o Prémio Aga Khan para a Arquitetura tornou-se um fórum para uma discussão profissional e académica dos desenvolvimentos que afetam o ambiente construído. Os debates que acontecem durante os seminários, a amplitude dos artigos publicados e a variedade de projetos distinguidos todos apontam para o verdadeiro objetivo do prémio, que é o compromisso de procurar as melhores soluções para a arquitetura no sentido de melhorar as comunidades muçulmanas pelo mundo, em vez de simplesmente reconhecer uma obra bem conseguida.
"O Prémio não está estritamente focado na arquitetura, mas olha para a excelência arquitetónica no contexto do desenvolvimento de estruturas e infraestruturas de vida social", diz Homi K. Bhabha, Professor Anne F. Rothenberg de Humanidades do Departamento de Inglês na Universidade de Harvard e membro do comité diretivo do Prémio desde 2008. “Um dos seus principais pontos fortes é a forma como se foca no papel desempenhado pelo ambiente urbano na criação da sociedade civil, assim como nos interesses arquitetónicos do planeamento e das infraestruturas civis.”
Impacto nas pessoas
O Prémio tenta descobrir uma ampla variedade de intervenções arquitetónicas. Cada projeto tem uma história distinta, e conhecer as suas histórias ajuda a perceber a escolha de cada um deles, seja uma escola amiga do ambiente no Burkina Faso, um parque no Cairo ou as Torres Petronas em Kuala Lumpur.
Já houve várias torres a serem premiadas. As Torres Petronas, construídas para albergar os escritórios da companhia petrolífera nacional, ganharam o Prémio em 2004 pela incorporação de designs tradicionais islâmicos de herança malaia, assim como a inclusão de uma galeria de arte, uma sala de concertos e um centro comercial para responder às necessidades da sociedade local. O Edifício Residencial Moulmein Rise venceu em 2007 por reconhecer que o clima se torna mais ameno em altitude e por projetar as janelas de um modo que permita a entrada de ar sem chuva. A Torre Met em Banguecoque foi nomeada para o prémio deste ano devido à sua ventilação cruzada natural que elimina a necessidade de ar condicionado e a adoção de aspetos típicos de habitações tropicais com poucos pisos, como os terraços ao ar livre.
Já venceram vários projetos habitacionais. Por exemplo, o projeto de habitação social de Khuda-ki-Basti em Hyderabad, Paquistão, vencedor do prémio em 1995, quebrou com o modelo convencional de habitações para pessoas com baixos rendimentos. Os projetos tradicionais vinham-se mostrando ineficazes na resposta às necessidades das famílias, que eram muitas vezes incapazes de pagar as suas despesas, deixando os terrenos e as casas nas mãos de especuladores. Em Khuda-ki-Basti, em vez disso, foi implementado um projeto gradual de desenvolvimento destinado aos mais pobres, atribuindo terrenos e permitindo que as pessoas vão construindo gradualmente conforme as suas possibilidades.
Por seu lado, o Grameen Bank, fundado pelo vencedor do Prémio Nobel Muhammad Yunus, venceu em 1989 com um projeto habitacional iniciado em vários locais em Bangladesh, no seguimento de uma bem-sucedida disponibilização de empréstimos sem garantias para os pobres de zonas rurais começarem a criar iniciativas geradores de rendimentos. O banco ofereceu crédito e materiais para a construção de casas aos seus membros sem abrigo, 84% dos quais eram mulheres. Nos primeiros cinco anos do programa, foram construídas 44 500 casas e 98% dos participantes pagaram os seus empréstimos.
O Prémio também distinguiu projetos de restauração, que tenham incorporado mudanças no sentido de responder às necessidades atuais sempre que necessário. Nestes incluem-se desde um projeto nomeado para o prémio deste ano de reconstrução do vasto campo de refugiados com 60 anos de Nahr el-Bared, no Líbano, que foi quase todo destruído na guerra de 2007, construindo em altura para abrigar os 27 000 residentes e libertando alguma terra de si escassa; a utilização de materiais originais para restaurar a escola de Amiriya do Século XVI e o complexo da mesquita em Rada, no Iémen, e abri-lo ao público transformando o piso térreo num museu - vencedor em 2007; e a restauração da cidade velha de Bucara, com 2500 anos, que venceu em 1995 pela criatividade do projeto em encontrar novas funções para as madraças e mausoléus reabilitados ou por devolver às antigas cúpulas de comércio a sua finalidade original enquanto mercados ativos.
“Os projetos de restauração geraram um efeito cascata no país, criando uma noção entre a comunidade e o governo de que, se não cuidarmos do nosso património, iremos perdê-lo”, diz Azim Nanji, professor de Estudos Islâmicos, que deu aulas na Universidade de Stanford e que fez parte do comité diretivo e do grande júri do Prémio. “O foco em projetos rurais e urbanos criou uma perceção da existência de pessoas marginalizadas na sociedade, motivando líderes comunitários, governos e arquitetos locais a construir projetos que respondam às necessidades dos mais pobres, mas de uma forma inovadora a nível arquitetónico e social."
A beleza de alguns projetos está nas suas inovações radicais. Os abrigos de sacos de areia em forma de arco no Irão funcionam como habitações de emergência para os refugiados em Ahvaz. Estes vencedores de 2004 medem 14 metros quadrados, são sismicamente seguros, impermeáveis às condições climáticas e foram construídos usando materiais de guerra. E custam apenas 4 dólares cada. Ou a fábrica têxtil Ipekyol em Edirne, no noroeste da Turquia, que venceu em 2010. Esta integrou as metas de produção com o bem-estar dos funcionários, criando um espaço de trabalho único que anula as divisões entre trabalhadores fabris e de escritório - numa indústria geralmente caracterizada por uma força de trabalho feminina e por gestores masculinos - e entre homens e mulheres. Também incorporou janelas do chão ao teto para que os trabalhadores tenham acesso a luz natural e a uma vista da natureza.
“O prémio foi concedido às torres de água, à melhoria de favelas e, por isso, foi possível mostrar que qualquer intervenção no ambiente construído é arquitetura, e que qualquer passo no sentido de melhorá-la deve ser reconhecido”, diz Farrokh Derakhshani, Diretor do Prémio. "Alargou o discurso arquitetónico internacional através da introdução de novas questões, como conservação, infraestruturas, questões sociais, que não eram consideradas anteriormente questões arquitetónicas."
O que todos os vencedores têm em comum é que todos mostram como a arquitetura pode ser um meio de melhorar as sociedades. Um dos vencedores do Prémio em 2010 foi uma escola na China que era ao mesmo tempo uma ponte, ligando duas partes da aldeia de Xiashi na província de Fujian, que ficavam nas duas margens de um riacho. Toda a estrutura, incluindo um passadiço pedestre por baixo da escola e as paredes dos dois lados que se abrem para espetáculos, proporcionou um espaço social para Xiashi e tornou-se um centro físico e espiritual para a aldeia outrora decadente.
Outro projeto foi a reabilitação do vale de Hanifa, na Arábia Saudita, o vale mais longo e importante perto da capital, Riade, e um curso natural de escoamento de água para a cidade. O vale, depois de ter sido explorado agressivamente durante o processo de urbanização até se tornar perigoso e coberto de lixo, está a ser restaurado para criar um excecional espaço público para a população de Riade se reunir. Os terrenos agrícolas estão a ser melhorados e está a ser construída uma estação de tratamento de águas residuais para fornecer água suplementar para aquela região árida.
"As questões sociais e políticas da vida quotidiana são coisas que podem ser abordadas pela arquitetura", diz Farshid Moussavi, diretor da Farshid Moussavi Architecture, com sede em Londres. “Os edifícios não são convenções; não resolvem todos os problemas do mundo. Mas podem ser um poderoso instrumento de mudança na vida quotidiana, seja através da abordagem de processos de mudança necessários ao nível do ambiente, uso de materiais e hábitos sociais. O Prémio é uma homenagem a este tipo de processos."
Impacto na arquitetura
O Prémio está a ver a sua alçada geográfica a expandir-se, à medida que as comunidades muçulmanas se desenvolvem em todo o mundo. Para além de projetos do Médio Oriente, África e Ásia, foram concedidos prémios ao Institut du Monde Arabe, em França, à reabilitação da Cidade Murada, no Chipre, e ao Museu Madinat al Zahra, em Espanha. A lista final deste ano inclui um cemitério muçulmano na Áustria.
“O impacto mais importante passa pelo fortalecimento da busca pela excelência na arquitetura do mundo islâmico”, diz Rabbat. “A competição, às vezes, tem aspetos positivos. Também chamou atenção da arquitetura islâmica para a comunidade arquitetónica mundial, um processo que foi reforçado mais tarde pela criação do Programa Aga Khan para a Arquitetura Islâmica em Harvard e no MIT."
Tão importante quanto a própria arquitetura é o discurso intelectual à sua volta. Nas últimas quatro décadas, o Prémio testemunhou uma evolução na discussão acerca da infusão do ambiente construído das sociedades muçulmanas com uma identidade “islâmica”. Esta questão foi bastante debatida durante as décadas de 1970 e 1980, em plena explosão na construção alimentada por petrodólares em muitos países do mundo muçulmano, o que levou as pessoas a pensarem mais seriamente acerca dos significados culturais daquilo que estavam a construir, e devido ao movimento pós-moderno, que abordou questões como o papel do passado no ambiente construído do presente.
Com o tempo, este interesse na modernidade e na tradição, e no desenvolvimento de identidades arquitetónicas “islâmicas” foi diminuindo, de acordo com Mohammad al-Asad, diretor fundador do Centro para o Estudo do Ambiente Construído em Amã, na Jordânia.
"Embora continue a existir um debate considerável acerca destas questões no mundo islâmico, o qual por vezes se expressou de forma violenta, a arquitetura e o ambiente construído já não fazem parte desse debate", diz al-Asad, que vem colaborando com o Prémio há mais de duas décadas. “O interesse pelo ambiente construído passou a lidar questões como o uso da tecnologia, a sustentabilidade, e as várias necessidades crescentes e variáveis de cidades que estão a crescer a um ritmo incrivelmente rápido."
A Umma - a comunidade muçulmana em todo o mundo - expandiu-se por uma área complexa, diversa e descentralizada que é internacional e multicultural e, como tal, não possui um estilo único de infraestruturas ou planeamento, diz Bhabha, que é também um teórico cultural. As novas categorias a considerar para o Prémio deverão incluir as áreas industriais, assim como ambientes construídos na intersecção da barreira rural-urbana.
"Dada a disseminação global do capital, queremos ver como é que isso afeta as sociedades", diz Bhabha. “As novas indústrias, o mundo digital, assim como edifícios industriais de larga escala. Também os sinais da distribuição equitativa de recursos: se existir um pequeno sinal disso no mundo em desenvolvimento, devemos perguntar-nos porquê.”
Às vezes, o mundo rural é esquecido à medida que as pessoas olham cada vez mais para as cidades, diz Bhabha. Quando as populações rurais se mudam para o sector urbano durante períodos de prosperidade, vão viver em favelas e guetos, em lugares onde têm poucos direitos e não estão muito bem instaladas - vivendo basicamente uma vida rural na cidade. É muito importante ver esta área como uma forma de desenvolvimento, diz. Por um lado, existe um desenvolvimento em larga escala e, por outro, estes aglomerados que não são nem urbanos nem rurais, que têm levado à criação de novas relações com as classes urbanas, providenciando serviços como lavandarias ou cibercafés.
“Houve uma mudança na arquitetura das sociedades muçulmanas, passando de um interesse apenas no património e preservação para um interesse no contemporâneo”, diz Moussavi. “O Prémio continua a apoiar iniciativas de preservação de cidades e edifícios históricos, mas também reconhece a necessidade de construir o futuro. A dada altura, estas estruturas antigas passaram a ser novas, oferecendo às pessoas novas formas de se envolverem no seu ambiente construído, e nós temos de alargar estas visões celebrando iniciativas que abranjam as necessidades tanto atuais como futuras.”
O futuro do Prémio
Já passou uma geração desde que o Prémio foi criado.
"Muita coisa se passou desde então", diz al-Asad. "As populações em todo o mundo islâmico cresceram tremendamente, e a necessidade de desenvolver ambientes construídos que respondam adequadamente às suas necessidades - ao nível de habitações, estruturas institucionais, serviços de infraestruturas, espaços públicos abertos, redes de transporte - está a tornar-se mais urgente e mais importante do que nunca."
Para abordar estes novos desenvolvimentos, o Prémio aumentou a amplitude de projetos que podem ser nomeados. Agora é possível nomear projetos de infraestruturas, por exemplo. O Prémio também começou a publicar os relatórios minuciosos realizados acerca de cada projeto, os quais podem ser usados por estudantes e professores para suscitar e ajudar na investigação.
“Se as sociedades quiserem construir uma arquitetura que tenha surgido da sua própria área, existe uma necessidade de encorajar os arquitetos locais a não se limitarem a imitar aquilo que se presume que seja arquitetura moderna, para que os países não se tornem monótonos”, diz Nanji.
“Nem tudo que é moderno é necessariamente relevante. Por exemplo, houve uma altura em que foram construídas duas torres de estilo soviético em Zanzibar, uma ilha com o seu próprio estilo único de arquitetura. Acabaram por cair em desuso: ninguém queria viver nelas pois não existia uma sensação de comunidade, de pertença. Exemplos como este costumam acontecer porque os projetos simplesmente não são bem ponderados. Por isso, a educação é muito importante."
O Prémio Aga Khan para a Arquitetura alcançou vários marcos importantes ao longo dos anos. Transformou a forma como os arquitetos, clientes e utilizadores das comunidades muçulmanas pensam acerca da arquitetura, ligando-a firmemente ao solo no qual é construída e aos seus habitantes. Foi igualmente importante ter dado destaque a soluções de vanguarda para os desafios económicos, sociais e ambientais dos países, fornecendo modelos que podem inspirar arquitetos e utilizadores de outros lugares. Hoje, à medida que as comunidades muçulmanas no Oriente e no Ocidente passam por mudanças rápidas e por vezes violentas, o contínuo debate intelectual e a investigação prática nos quais o Prémio insiste, acerca do modo como o ambiente construído deve ser e como pode servir os seus habitantes, é tão crucial como nunca.
"Quando pensamos naquilo que faz a diferença para o bem-estar, saúde e felicidade das pessoas, percebemos que um alojamento constitui uma parte fundamental", diz Hanif Kara, Professor de Prática de Tecnologia Arquitetónica na Faculdade de Design de Harvard, que vem colaborando com o prémio durante quase uma década. “Este Prémio - e a noção que desenvolve numa altura em que os países estão a construir a um ritmo acelerado sem pensar na sustentabilidade, e estamos a consumir informação através de imagens e não de críticas aprofundadas - pode ensinar-nos a parar e questionar o porquê.”
“Em última análise, este é um prémio das pessoas."
Esta é a conclusão de uma história de duas partes, escrita pela jornalista Ayesha Daya para a AKDN e TheIsmaili.org, que explora os objetivos e o impacto do Prémio Aga Khan para a Arquitetura. Leia a primeira parte aqui.