República do Quirguistão · 16 março 2021 · 6 Min
AKDN / Christopher Wilton-Steer
O colapso repentino e dramático da União Soviética em 1991 levou ao surgimento dos estados independentes da Ásia Central. Para uma região sem litoral e historicamente interligada, a formalização e o endurecimento de novas fronteiras nacionais - outrora abertas e permeáveis - tiveram um enorme impacto na cooperação e estabilidade na região.
Existem cada vez mais conflitos nas zonas de fronteira pelo controlo dos recursos, especialmente pela água de irrigação e terras de pastagem, e que estão a afetar cada vez mais as relações locais, regionais e internacionais.
Depois de uma boa parte do mundo ter redescoberto esta região esquecida no seguimento da grande iniciativa da “Nova Rota da Seda” levada a cabo pelo governo chinês, em 2019, Nicholas McGrath da Fundação Aga Khan (AKF) viajou até às problemáticas regiões fronteiriças do Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão para saber mais acerca do trabalho da AKF e dos seus parceiros junto das comunidades para fazer face os desafios complexos com que se debatem estas populações que habitam nas zonas de fronteira da antiga Rota da Seda.
O responsável pelo departamento de água em Ferghana, no Oblast de Osh, refere que os novos canais de irrigação em cimento permitem que a água percorra maiores distâncias de forma mais rápida, uma vez que deste modo esta não é absorvida pelo solo.
AKDN / Nicholas McGrath
Fronteira complexa, comunidades divididas
A era soviética trouxe uma grande industrialização e investimento em infraestruturas e serviços públicos para a Ásia Central, mas deixou um legado complexo ao nível da tensão entre etnias e problemas ambientais.
A região é cortada por fronteiras tortuosas e definidas de forma centralizada que deixam muitas vezes as comunidades uzbeques, quirguizes e tajiques em lados diferentes de fronteiras cada vez mais rígidas, mas que dependem dos mesmos recursos naturais partilhados de terra e água.
O legado das novas fronteiras levou à criação de aglomerados de “enclaves” isolados que se concentram em torno das frágeis fronteiras do Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão. Como explicou o responsável pelo departamento distrital de água em Ferghana, do lado quirguiz da fronteira entre Quirguistão e Uzbequistão: “Uma parte significativa desta população é uzbeque. O resto é quirguiz. Nós crescemos juntos. Somos o mesmo povo. Muitas pessoas têm relações familiares que ultrapassam a fronteira. A minha irmã casou-se com um uzbeque e mora no Uzbequistão.”
A água para irrigar a principal cultura agrícola da região, o trigo, e as terras para a pastagem do gado estão sob intensa pressão, mas as nascentes foram divididas entre fronteiras rígidas. Ele continuou:
“Durante a era soviética, as pessoas estavam coletivizadas e a água era canalizada diretamente para as quintas coletivas. Quando o sistema soviético terminou, a administração da água entrou em colapso. As famílias passaram a usar água como entendiam. Os canais de irrigação ficaram gravemente danificados.”
Com o colapso que se seguiu, os orçamentos governamentais desapareceram da noite para o dia, e a transição de um modelo centrado no estado com serviços gratuitos para uma economia de mercado levou ao estabelecimento de Associações de Utilizadores de Água (AUA) administradas pelas comunidades, de modo a aliviar a pressão sobre o governo local.
Como explicou um membro da AUA local no Distrito de Osh: “O governo local deixou de ser capaz de fazer a gestão da água. No passado, a água era gratuita. Mas aos poucos foram sendo introduzidas taxas. Houve muita resistência. As pessoas diziam 'Porque temos de pagar pela água de Deus?' Tivemos de criar uma comissão de mitigação de conflitos para lidar com disputas na comunidade relacionadas com o acesso à água.”
Graças aos novos canais de irrigação, a água pode ser usada por mais agricultores e explorações agrícolas, garantindo uma distribuição mais justa e uma redução das tensões associadas.
AKDN / Christopher Wilton-Steer
As AUA são órgãos eleitos e os agricultores locais pagam uma pequena taxa de serviço para serem membros. Existem em ambos os lados da fronteira e o seu papel na mediação de conflitos locais tem-se revelado essencial para assegurar o acesso à água e evitar disputas pelos recursos nos respetivos territórios.
Investir em plataformas de cooperação
Com o apoio do fundo UKAid do Ministério Britânico dos Negócios Estrangeiros, Commonwealth & Desenvolvimento (FCDO), a AKF trabalhou com o Programa de Apoio ao Desenvolvimento das Sociedades de Montanha (MSDSP) e organizações de base locais, a CAMP Alatoo e a Iniciativa Roza Otunbaeva (ROI), a Universidade da Ásia Central (UCA), para além da iniciativa Accelerate Prosperity, para lidar com as fontes de instabilidade relacionadas com os recursos nas zonas fronteiriças do Quirguistão e do Tajiquistão.
Entre 2016 e 2020, o programa intitulado “Melhorar a estabilidade e a gestão dos recursos naturais no Tajiquistão e no Quirguistão” trabalhou com organizações locais como as AUA, A União Comunitária de Utilizadores de Água Potável (CDWUU) e as Associações de Utilizadores de Pastagens (AUP) para melhorar o acesso e a gestão da água para irrigação, água potável e terrenos de pastagem através da reabilitação das infraestruturas existentes nas zonas de fronteira afetadas pelo conflito. O programa reabilitou 109 locais.
Os tanques de água contêm cloro, que é adicionado à água em quantidades muito pequenas para garantir que esta é segura para beber.
AKDN / Christopher Wilton-Steer
Para além disso, e em estreita colaboração com o Departamento de Água do Ministério da Agricultura da República do Quirguistão, o programa trabalhou para fortalecer as AUA e os órgãos do governo local no sentido de ajudar a melhorar a gestão e distribuição destes recursos naturais partilhados, minimizar a instabilidade potencial e os conflitos relacionados com os recursos através da garantia de uma estabilidade no abastecimento e acesso.
No último ano do projeto, a iniciativa regional de desenvolvimento empresarial e comercial Accelerate Prosperity juntou-se ao programa para testar uma abordagem com vista ao aumento da eficácia e eficiência dos serviços das AUA e CDWUU através da aplicação de princípios de crescimento empresarial e comercial com o intuito de melhorar a prestação de serviços.
Em parceria com a ROI, o programa criou jardins-de-infância jailoo em terrenos de pastagem no Quirguistão, que oferecem serviços de ensino enquanto os pais acompanham o gado nas pastagens em grande altitude.
Este programa já beneficiou mais de 300 000 pessoas no Tajiquistão e no Quirguistão, através de melhorias nos canais de irrigação, nos sistemas de água potável e nas vias de acesso às pastagens, para além de melhorias nas infraestruturas para o gado nos terrenos de pastagem, como veterinários e locais de abastecimento de água.
O responsável de uma AUA descreveu-o assim: “Ouvi falar do projeto na televisão. Recebemos formação e orientação por parte do programa, o que nos ajudou a desenvolver competências de contabilidade e manutenção de registos. Anteriormente, não éramos capazes de fazer um controlo dos pagamentos. Não conseguíamos sequer pagar os nossos próprios salários. Agora podemos cobrar as taxas dentro do prazo, manter a água a fluir e pagar um salário a nós mesmos.”
Os membros de uma Associação de Utilizadores de Água no Oblast de Osh têm noção do quão essenciais estas associações se tornaram na salvaguarda do acesso à água e na prevenção de disputas relacionadas com os recursos.
AKDN / Nicholas McGrath
Reformular o problema
O programa deu ainda origem a pesquisas que podem ajudar a resolver os problemas e causas subjacentes à instabilidade na região. Esta pesquisa ativa revelou a importância da reformulação do conflito.
Como explicou a Dra. Asel Murzakulova, Investigadora Sénior na UCA: “As perceções estão a ficar toldadas para se concentrarem apenas na questão do conflito étnico. Mas o que existe é um problema agrícola nesta região que já existia muito antes do colapso da URSS. As terras foram intensamente sobreutilizadas. Se olharmos para o problema apenas do prisma da segurança, passa-nos ao lado o facto de isto se tratar fundamentalmente de uma questão de gestão de recursos naturais.”
Tendo isto em conta, o UCA realça a necessidade de abordar o problema como uma “crise agrícola”.
“Existem problemas entre aldeias quirguizes e uzbeques e entre diferentes AUA. Não é apenas uma questão étnica, é uma questão de gestão de recursos naturais e é algo que está a afetar toda a gente. Mas as pessoas precisam de ajuda agora, não podem esperar. Toda a região é pobre em água e recursos e precisa de soluções. A região de Batken tem a maior taxa de emigração e pobreza do país. As alterações climáticas estão a intensificar ainda mais a pressão sobre estes recursos”, explicou a Dra. Murzakulova.
“As perceções estão a ficar toldadas para se concentrarem apenas na questão do conflito étnico. Mas o que existe é um problema agrícola”, explicou a Dra. Asel Murzakulova, Investigadora Sénior na UCA.
AKDN / Nicholas McGrath
Aumentar os vínculos e a cooperação para o futuro
O extraordinário ritmo de abertura e reformas a que se tem assistido recentemente no Uzbequistão talvez possa servir como exemplo do que é possível alcançar com o aumento dos vínculos regionais e da cooperação na Ásia Central.
Através do investimento em organizações locais da sociedade civil e da busca de oportunidades para promover a cooperação entre comunidades em assuntos relacionados com os recursos naturais partilhados, a AKF, o MSDSP e os seus parceiros têm vindo a fortalecer instituições que podem funcionar como plataformas locais e regionais de cooperação.
Ao combaterem estes desafios existenciais iminentes criados pelas alterações climáticas, a iniciativa da Nova Rota da Seda, e agora as consequências sociais e económicas da pandemia da COVID-19, estas instituições e grupos cívicos irão tornar-se ainda mais essenciais para a salvaguarda da resiliência e da adaptabilidade destas comunidades transfronteiriças demasiadas vezes marginalizadas que vivem no coração da Ásia.
Este texto foi adaptado de um artigo publicado no site da AKF (Reino Unido).