Por Mr. Justice Albie Sachs, Ottawa, Canada · 19 maio 2016 · 19 Min
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Se fizessem um teste de paternidade à Constituição sul-africana, a quem pertenceria o ADN? Apesar da opinião dos oradores, não seria o de Albie Sachs. Não seria o de Nelson Mandela. Não seria o de F.W. de Klerk. Não seria o de Oliver Tambo.
A minha memória recua a 1988. Eu ainda tinha dois braços. Encontrámo-nos numa sala relativamente pequena, do tamanho desta tribuna, em Lusaca. Havia seguranças zambianos por perto na eventualidade de uma emboscada da África do Sul para nos prenderem. Estamos a discursar pela primeira vez numa conferência do ANC sobre diretrizes constitucionais para uma nova África do Sul. Estou a subir para a tribuna e o meu coração batia muito depressa. Alguns delegados pertencem à resistência clandestina, outros são militares, à procura de uma maneira para regressar à África do Sul. Outros são diplomatas, também há pessoas que dão apoio político, há jornalistas e eu estou ansioso. A minha função, atribuída por Oliver Tambo, é explicar através dos delegados presentes, à nossa organização, e ao mundo, por que motivo a África do Sul necessita de uma Carta de Direitos.
A maioria dos sul-africanos tinha uma grande desconfiança em relação a uma Carta de Direitos. Alguns deles apelidavam-na de “Direitos dos Brancos”. Havia o receio que, depois de termos uma democracia e o direito de votar, seria aplicada uma Carta de Direitos que iria paralisar o “status quo” e dar poder completo aos juízes e impedir-nos de avançar. Estavam a pedir-me para dizer o que necessitávamos, do que o país necessitava: uma carta de direitos. Tenho três motivações: A primeira era fácil. Fazia-nos parecer bem. Acusaram-nos de terroristas. O que vai acontecer? Vêem o que aconteceu noutros países africanos? Se os negros assumissem o controlo, iam apoderar-se de tudo e zelar apenas pelos seus interesses. Não há futuro para os brancos nesse país. Os delegados aceitaram bem o facto de querermos transmitir uma boa imagem, para sermos respeitados a nível mundial. Em 1987, no ano anterior, o ANC tinha aprovado uma carta de direitos como parte da sua política e, no ano anterior, uma democracia multipartidária. Mas não era por isso que o meu coração estava a bater depressa.
O segundo motivo para aprovar uma Carta de Direitos era mais complexa e, de certo modo, mais fundamental. Não era apenas uma estratégia. Foi a resposta de Oliver Tambo à teoria que nos estava a ser atribuída partilha do poder, direitos de grupo. Na minha opinião é importante nesta conferência, neste debate sobre pluralismo mostrar como o conceito do pluralismo pode ser manipulado, porque estavam a aproveitar-se do pluralismo e a afirmar que somos uma minoria e que estávamos a aproveitar-nos da questão de proteção das minorias para de facto disfarçarmos o facto de que os brancos eram detentores de 87 % da propriedade por lei e de 95 % do capital produtivo. Na África do Sul, a minoria era a maioria e a maioria era a minoria, pelo que esse tipo de discurso que defende a proteção dos direitos da minoria estava agora a ser manipulado para manter os privilégios da minoria. A sua resposta foi: “Não queremos partilha do poder entre grupos raciais e étnicos na África do Sul. Não queremos partilha do poder entre brancos e pretos. Queremos uma sociedade igualitária de cidadãos cujos direitos são protegidos por uma Carta de Direitos, não porque são brancos ou pretos ou membros da maioria ou da minoria, mas porque são seres humanos”.
Foi a sua visão profunda e abordagem. Não com o intuito de institucionalizar a raça ou a etnia nas estruturas dos governos, como estava a ser feito. Mas para reconhecer o pluralismo através do pluralismo político, não através da criação de formas de autonomia, direitos de grupo, institucionalizados, constitucionalizados em torno da raça, etnia, idioma, cor da pele, o que quer que seja. Foi a resposta estratégica e eu vi soldados, mineiros e outros a acenarem com a cabeça, todos muito felizes com o facto do ANC estar a debater constituições, não apenas estratégias para derrubar o apartheid e a ganhar amigos, mas o tipo de país onde vamos viver.
Mas não era por isso que o meu coração batia tão depressa. O meu coração batia muito depressa pelo terceiro motivo. Eu disse que precisávamos de uma Carta de Direitos contra nós próprios. Eu tinha receio. Qual seria a reação deles? É fácil para Albie Sachs, um advogado de classe média, com uma vida confortável. Nós estamos na linha da frente da luta. Somos confrontados com a violência todos os dias. Não nos enganam com linguagem de advogado e belas ideias. Porém, em vez de repúdio ou rejeição, só vi regozijo. As pessoas sabiam que os países onde vivíamos em África tinham lutado com coragem e nobreza pela liberdade, mas os líderes tornaram-se déspotas autoritários. Sabiam o que isso era na prática. O que iria acontecer-nos? As pessoas viram no seio da nossa organização comportamentos e abusos totalmente inaceitáveis. O que irá acontecer-nos quando estivermos no poder? Havia sempre a suposição que iríamos ficar no poder. Havia um olhar de prazer, de regozijo, que estávamos dispostos a reconhecer e a lidar com as nossas fragilidades. Por isso, quando chegou a altura de redigir a constituição, estávamos muito cientes disso. A constituição é criada não apenas para o primeiro governo, não apenas para vocês, não apenas para os melhores da vossa organização. É criada para o futuro.
Pasme-se: depois de conversações após conversações, finalmente chegámos às conversações. Negociações a sério. Demorámos dois anos. O grande confronto, que não foi compreendido nem em África ou a nível internacional. O grande confronto... Já agora, como é que a África do Sul conseguiu criar a constituição? Informaram-nos que o extraordinário, o maravilhoso Nelson Mandela tinha sido libertado, 27 anos preso, sem rancor e que vai reunir-se com o sábio e pragmático de Klerk. Chegaram a um acordo. Enviaram-no para os advogados para redigirem uma constituição.
Foi assim que foi aprovada. Mas não foi bem assim... Não foi nada assim. Demorámos seis anos. Houve ruturas. Houve manifestações em massa. Chris Hani foi assassinado. Quase implodimos. Houve uma guerra civil de pequenas proporções. As pessoas eram atiradas de comboios. O confronto básico era entre duas visões totalmente diferentes sobre o tipo de estruturas do governo que deveríamos ter e que processo devia ser empregue para criar a nova constituição.
Naquela altura, quando nos referíamos ao governo da África do Sul, falávamos do “inimigo”. Depois o inimigo tornou-se, à medida que progredíamos, o “regime”. Depois, quando fizemos mais progressos, era o “governo maldito”. Terminou com “o outro lado”. Na reta final, dissemos: “O que diria o outro lado?”. Atualmente, o grande confronto de pontos de vista está algures entre o “regime” e o “governo maldito”. O regime da África do Sul diz: “Temos de redigir a constituição agora. A constituição que queremos terá alguma partilha do poder”. Inicialmente, era para ser entre as raças, depois isso foi posto de parte e acabou por ser dividida entre os três partidos principais. Os três partidos principais eram o ANC, o Partido Nacional liderado por de Klerk e o Partido da Liberdade KwaZulu Inkatha de Buthelezi. Depois afirmaram: “Necessitamos de três presidentes que representem os três partidos. Devem governar por consenso e devemos ter uma Câmara dos Deputados eleita por sufrágio universal e o Senado será a Câmara dos partidos minoritários, porque todos sabem que os democratas protegem os direitos das minorias”. [Nós chamávamos-lhe de “Câmara dos Falhados”!] O Senado permitia que os partidos minoritários pudessem ter o direito de veto em relação a questões importantes e especiais para eles.
Era uma forma disfarçada de partilha do poder baseada num princípio étnico que iria garantir eficazmente que, em vez de ser vista como facilitador de transformação, mudança e abertura das portas e acesso a todos, a constituição seria considerada um entrave à mudança. A constituição teria sido o inimigo. As pessoas que pertenciam à maioria iriam odiar a constituição porque nos impedia de progredir, apesar de nos dar o voto. Tivemos de escamotear essa ideia. Normalmente, não gosto de imagens militares, mas tivemos de destruir esse sistema.
Além disso, disseram: “Temos de redigir agora a constituição”. Dissemos: “Não”. Só quando a população da África do Sul como um todo, através de representantes mandatados, de uma assembleia constitutiva que represente o nosso primeiro parlamento, redigir um documento, é que terá significado para as pessoas e legitimidade. As pessoas nunca foram consultadas nem participaram nas decisões relativas às suas vidas, ao seu futuro. Agora, o grupo de negociadores autoproclamado vai decidir por elas. Afirmámos: “Queremos um processo de criação da constituição de duas fases. Podemos chegar a um acordo antecipado em determinados princípios fundamentais que devem constar na nova constituição. Podemos concordar que é necessário uma maioria de dois terços. Podemos concordar numa representação proporcional. De facto, até referimos que não haveria qualquer limite ou divisão, para que os partidos mais pequenos pudessem ser representados. E concordámos em criar um tribunal constitucional que decidisse a conformidade ou não dos princípios”. Isto é uma invenção sul-africana que podia funcionar, mas o regime não aceitou. Foi um massacre. O ANC disse: “Só podemos continuar as negociações depois dos massacres pararem”. Eventualmente, após alguns meses de negociações confidenciais muito difíceis, o regime aceitou um sistema básico de duas fases para haver progresso, e a África do Sul conseguiu ter uma constituição provisória que deu origem às eleições de 1994, Mandela tornou-se presidente e foi redigida uma constituição final em 1996.
Milagres... Disseram-nos que foi um milagre. Não é possível fazer milagres, resolver problemas, agendas e inúmeros relatórios em pouco tempo. Trabalhámos muito, de maneira muito inteligente, criando novas modalidades enquanto progredíamos e finalmente chegámos ao documento consensual que nos permitiu ser bem-sucedidos durante o processo de duas fases. Elegemos o Parlamento. O Parlamento tem agora dois anos para redigir a constituição, em conformidade com os 34 princípios previamente acordados e eu digo sempre que eles trabalharam até tarde no último dia do segundo ano. Felizmente, 1996 foi um ano bissexto, por isso tiveram mais um dia.
Foi enviada para o Tribunal Constitucional e para consternação dos meus antigos colegas de negociações e que lutaram nas trincheiras, anunciámos que a constituição era inconstitucional. No geral, estava em conformidade, mas havia nove questões em que não estava. Para os que estão atentos ao que se passa na África do Sul, pode ser do vosso interesse saberem que verifiquei há pouco tempo quais eram os nove fatores e um deles estava relacionado com os poderes do defensor público. O princípio principal acordado previamente afirmava que o defensor público e o auditor geral, que pertenciam a um grupo chamado Instituições para Proteger a Democracia na Constituição, deviam ter a sua independência salvaguardada. O projeto de texto afirmava que está salvaguardado por uma maioria de 50 % que o Parlamento necessitava para os destituir. O Tribunal afirmou que a salvaguarda não era suficiente. A maioria necessária aumentou para 2/3 e, possivelmente, se não tivesse atingido os 2/3, a defensora pública, cujo relatório fez com que o Presidente Zuma apresentasse um pedido de desculpas, uma crise no ANC, grande apoio popular ao sistema judicial independente que proferiu essa declaração, talvez ela não estaria ali e não teria havido qualquer relatório.
Podem reparar que nós rejeitámos o pluralismo na maneira como estava a evoluir, mesmo quando era empregue o conceito de “consociativismo”, como se chamava na altura. Nós recusámos aceitar a ideia de que a nossa História, criada por vários grupos da nossa sociedade, muitas vezes com grande tensão, devesse ser representada como tal e tentámos chegar a um acordo no Parlamento e ao nível executivo no governo. Mas aceitámos o pluralismo no sentido do reconhecimento constitucional da diversidade da nossa nação e através da Carta de Direitos, de direitos linguísticos, delegação de poderes. Direta e indiretamente, defendemos muito o pluralismo. Além disso, estávamos também a tentar unir a África do Sul, que estava fragmentada por causa do apartheid. Queremos um país unido, não necessariamente um país unitário, mas que seja unido. No nosso prefácio diz: “Unidos na nossa diversidade”. A África do Sul pertence a todos os que aí vivem. Unidos na nossa diversidade. Essa é a questão fundamental do nosso esforço constitucional.
A diversidade não destrói a unidade, mas a verdadeira unidade depende do reconhecimento da diversidade. Não é uma unidade imposta. É uma unidade sentida, apreciada e praticada por pessoas afetadas por ela.
Vou dar-vos dois exemplos de como esse princípio de unidade na diversidade funcionou em termos práticos no Tribunal Constitucional: o primeiro tem sido controverso em muitos países, creio que isso se verificou aqui no Canadá. Trata-se da questão tão complexa e incómoda do direito consuetudinário e da igualdade do género, a relação entre os dois. Não tenho a certeza se foi o caso Lovelace no Canadá.
As pessoas achavam que tinham o direito de decidir. Vocês são a favor do reconhecimento da autonomia aborígene no que respeita à tomada de decisões, em que as mulheres ficaram muito mal vistas ou são a favor da igualdade do género? Vocês tinham de escolher.
Nós reconhecemos que havia tensões, mas tentámos resolvê-las não através da eliminação de uma dinâmica, de um elemento, em que um vence e outro perde. Em vez disso, procurámos encontrar um mecanismo para reconciliar os dois elementos de maneira escrupulosa nos três casos importantes apresentados no Tribunal Constitucional.
O primeiro foi o caso Bhe, onde um homem morreu. Ele e a mulher, de quem tinha duas filhas, viviam numa casa pequena. O primo do homem foi ter com ela e disse: “Vou vender a casa para pagar o funeral dele”. Foi chocante. As filhas dele tiveram de sair de casa porque ele não era casado oficialmente. A mãe não tinha quaisquer direitos formais ao abrigo do direito tradicional, o consuetudinário, ou ao abrigo do direito comum. O caso foi parar ao nosso Tribunal. Os outros tribunais declararam: “É a tradição. A constituição reconhece o direito consuetudinário. Existe também o direito de associação com outros para promover a linguagem, a cultura e a religião”. Ao associar o direito à cultura com o reconhecimento do direito consuetudinário, os tribunais afirmaram: “Temos pena das crianças. Mas a tradição é essa”. Foi então que intervimos: afirmámos que o princípio de primogenitura viola a Carta de Direitos. O argumento de que o homem de família mais idoso e próximo é o herdeiro é injusto, desleal e viola o princípio de igualdade da nossa carta de direitos. O meu colega disse: “A filha mais velha deve ser a herdeira”. Podia referir-se a uma menina, as filhas teriam sido as herdeiras. Mas a maioria de nós sentia que o problema era demasiado complicado para ser resolvido pelo Tribunal. Nós não éramos contra o direito consuetudinário. Há muitos aspetos no direito consuetudinário que são positivos e afirmativos e que contribuem para a solidariedade social. É algo de que toda a nossa sociedade necessita... Ubuntu. Um princípio filosófico profundo na cultura africana que acredito estar na origem das qualidades que as pessoas admiram em pessoas como Desmond Tutu, Oliver Tambo e Nelson Mandela. Sou uma pessoa porque sou uma pessoa. Não consigo ser humano se não reconhecer outra pessoa como humana. Não é só o direito consuetudinário que necessita disso, todos necessitamos disso. De facto, eu diria que todo o mundo precisa disso. No Canadá, Charles Gonthier, Juiz do Supremo Tribunal, enquanto falava sobre fraternidade, perguntou: “O que aconteceu à fraternidade?”. O que aconteceu a esse elemento excluído desse sentido de solidariedade humana que dá contexto à liberdade e à igualdade? É muito importante no direito consuetudinário africano e o Ubuntu deve ser mantido e melhorado, e não abolido.
O próximo caso está relacionado com os direitos das mulheres africanas na questão do divórcio. O Código Nativo de Nascimento dos zulus afirmava que o marido é o responsável pela propriedade familiar, tem poderes matrimoniais e controla tudo. Se a mulher quiser o divórcio, o problema é dela, pode regressar para a família. Pode divorciar-se, mas não fica com qualquer propriedade. Nós afirmámos que isso era inconstitucional e por isso criámos o conceito de direito consuetudinário vivo. O direito consuetudinário não é algo acronológico, descontextualizado, um conjunto de regras para sempre. O direito consuetudinário pertence às pessoas. Evolui à medida que a vida das pessoas mudam e que os conceitos evoluem. E agora as mulheres africanas têm salário. São independentes, fortes, cidadãs, eleitoras, participam de maneira equitativa na vida pública, e é inaceitável que o direito consuetudinário não possa evoluir para manter-se atualizado e dar resposta às novas circunstâncias. São as mulheres negras pertencentes à sociedade africana que agora exigem igualdade em termos de direito consuetudinário que tanto afeta as nossas vidas.
O terceiro caso é o da Sra. Shilubana, escolhida pela comunidade Baloyi para ser a sua “hosi”, a sua rainha, a sua líder. Era desejada pela família real. A reunião da comunidade queria-a e até o titular naquela época, que estava muito doente, afirmou que ela era a pessoa certa. Pouco antes de morrer, o titular disse: “Não. Eu cometi um erro. Quero que seja o meu filho”. O Estado nomeou-a e reconheceu-a. O filho foi a tribunal e os juízes afirmaram: “Não pode ser escolhido como líder ou rei. Nasceu líder ou rei”. Foi a decisão deles. O Supremo Tribunal de Justiça concordou. O caso foi-nos apresentado. O Tribunal estava cheio. Vieram mulheres em autocarros e a sala esteve repleta das 10h00 às 11h15. Depois saíram e chegou outro autocarro de mulheres que encheram a sala entre as 11h30 e as 13h00. O caso esteve em tribunal o dia inteiro. Foi muito comovente. Foi impressionante ver a sala cheia de pessoas. No final, a nossa decisão baseou-se no princípio de que o direito consuetudinário é um fenómeno vivo. Evolui. Mesmo que antigamente as mulheres não podiam ser líderes ou responsáveis das comunidades africanas, agora o direito consuetudinário mudou. Não era um caso do Estado dizer à comunidade: “Tem de ser mulher por motivos de igualdade”. A própria comunidade queria isso e tiveram de ser os juízes dos tribunais de instância inferior a afirmarem: “Não pode ter o que quer por causa de uma regra inflexível específica do direito consuetudinário”. A questão do direito consuetudinário vivo é muito produtiva. É muito importante e permite respeitar os aspetos democráticos do direito consuetudinário. Para milhões de pessoas para quem é muito mais verdadeiro do que uma certidão de casamento que pode ser obtida através de um funcionário do Estado. Remonta a própria sociedade, cultura, costumes, relações entre famílias, mas ao mesmo tempo não é estático. Evolui com os novos valores de uma nova sociedade.
O segundo caso que referi ficou muito conhecido a nível internacional. É o caso Fourie, relacionado com o casamento do mesmo sexo. Refiro isto porque se há um caso que lide com o direito a ser diferente, de maneira explícita, forte e potente, este é a melhor escolha. Todo o caso estava relacionado com o direito de ser diferente. Não apenas tolerante, mas diferente, algo muito mais forte, muito mais afirmativo. Tolerar, nesse sentido, é: “Tudo bem, podem ter relações privadas”. O direito exigido por casais do mesmo sexo defendia o direito de expressarem o seu amor, o seu compromisso ou associação numa base igualitária com igual dignidade. O motivo pelo qual refiro isto hoje está relacionado com o que considerei ser necessário dizer no julgamento, que li na sala, sobre a relação entre o sagrado e o secular. Fiz uma declaração inspirada num colega meu que era muito religioso. Eu sou, se assim se pode dizer, profundamente secular, e afirmei: “Não chamem intolerantes aos opositores do casamento do mesmo sexo. É a perspectiva que têm do mundo. É a sua opinião. Mas não permitam que imponham a sua opinião às pessoas que veem o mundo de maneira diferente. Isso não pode ser a base dos direitos civis do resto da sociedade”.
Falei sobre a convivência entre o sagrado e o secular e penso que isso é muito mais importante do que traçar uma linha cultural que declare que somos os esclarecidos, que eles são os ignorantes, e que nós vamos contribuir para o progresso e o esclarecimento.
O resultado foi o extraordinário grau de aceitação pelas comunidades religiosas na África do Sul. Não estavam a ser criticados. Pelo contrário, estavam a dizer-lhes que nas suas comunidades religiosas não eram obrigados a celebrar casamentos que fossem contra as suas crenças. A declaração até referia algo que agora é relevante para os debates nos E.U.A., nomeadamente que o Parlamento desse país, ao aprovar a legislação necessária, podia decidir que se os funcionários do registo civil por razões de consciência genuínos optassem por não realizar esses casamentos, não eram obrigados a fazê-lo. O motivo pelo qual escrevi isso era parcialmente para evitar que o ponto central da questão constitucional do debate fosse sobre os funcionários do registo civil e os seus direitos de consciência, em vez dos casais do mesmo sexo que querem expressar o seu amor e compromisso de maneira pública. Altera o centro da questão para uma área muito despropositada e desnecessária. Mas não só. O facto da cerimónia ser celebrada por alguém que se opunha de maneira veemente era também um fator a ter em conta. Mas cada um acredita no que quer, está tudo na nossa cabeça. É verdade que as pessoas não podem criar leis individuais. Não podem criar exceções só por causa das suas crenças se a lei não se dirigir a elas em específico, mas que na generalidade acaba por afetá-las. Além disso, afirmámos que o Estado tem a obrigação de fazer tudo ao seu alcance para evitar sujeitar as pessoas por um lado a uma escolha difícil entre a sua consciência e, por outro, à lei. É uma forma de compromisso razoável. A cultura jurídica com que crescemos não é flexível em relação ao compromisso razoável. Prefere classificações claras, mas necessitamos de descriminalização, compromissos razoáveis, muitos fatores atenuantes que nos permitam ter a fluidez e mobilidade que faz parte do dia a dia. O compromisso razoável e o pluralismo cultural e religioso conjugam-se bem.
Houston, tenho um problema. Estou a chegar ao fim da minha apresentação e quero terminá-la com uma apresentação. Vou falar-vos sobre um problema que tive e da educação a que fui sujeito para resolver esse problema. Enviei um e-mail à minha mulher ontem à noite. “Querida, sabes que sou um republicano muito convicto. Não gosto de títulos. Quando chegou a altura da criação do Tribunal Constitucional, decidimos que não queríamos ser tratados como “Senhor Presidente” ou “Senhora Presidente”. Nem nos apelidamos de “Ilustre”. Vai ser difícil para mim usar a forma de tratamento adequada à pessoa a quem pretendo entregar o bem mais precioso da África do Sul. Não se trata de ouro, de diamantes ou de platina. É a nossa Carta de Direitos”. Talvez Calina possa levantar-se e mostrá-la à pessoas. Espere um pouco. Temos tanto orgulho neste documento. Obrigado.
Foi muito interessante ver como, do momento em que tomei o pequeno-almoço até à cerca de uma hora, o meu raciocínio chegar a uma solução para resolver o problema que criei para mim mesmo. O primeiro passo foi dizer: “Vá lá, Albie, é o protocolo, é de bom tom. Tens de fazê-lo”. Mas eu passei grande parte da minha vida a lutar contra o protocolo. Eu podia fazê-lo, mas não seria elegante. O passo seguinte foi: “Estou na casa dele. Estou em sua casa, cujo nome foi atribuído em sua homenagem e eu seria um convidado atencioso ao respeitar o seu título”. Cheguei à conclusão que, para ser atencioso, não é necessário oferecer alguma coisa. Quando uma pessoa oferece algo, não tem de ser material. Se tem de oferecer algo, que seja do coração.
É assim que se descobrem as coisas, de repente, pensei: “Já sei! Não vou oferecer este documento a uma pessoa com título. Vou dar o documento ao responsável por uma comunidade extraordinária com um longo historial. Através dessa pessoa fico associado a comunidade e às ações que estão a ser feitas em nome dessa comunidade e isso é muito especial. Muito especial. Estou a superar-me nesse sentido, estou a ir para além do meu igualitarismo, não porque sou obrigado ou porque estou educado e atencioso. Penso que é louvável conseguir ir para além da minha visão delimitada e específica do mundo, que irei defender, se for forçado e obrigado a dar o braço a torcer e a mostrar respeito. Vou lutar contra isso, mas faço-o voluntariamente e porque gostei muito de ter estar aqui, de ler o livro e de conhecer as ações do Centro”. O que vou fazer agora é pedir-vos para irmos lá juntos. Não se levantem, por favor.
Agora, vou pedir-vos que parem de aplaudir, por favor, porque tenho uma coisa para dizer com prazer: “Sua Alteza, queira aceitar o bem mais precioso da África do Sul para o mundo e para vocês. Obrigado, Sua Alteza”.