By Prof. Adriano Moreira, Evora, Portugal · 12 February 2006 · 8 min
Adriano Moreira,
Presidente do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior,
Professor Emérito da Universidade Técnica de Lisboa,
Universidade de Évora,
Esta cerimónia de Doutoramento H. C. de Sua Alteza Aga Khan, pela nossa Universidade de Évora, tem um fundamento e um significado que ultrapassam muito a consagração dos altos méritos pessoais do homenageado, porque a cerimónia se inscreve, com inteira consciência e intenção dos promotores, numa desafiante conjuntura. Trata-se do encontro de todas as áreas culturais do mundo, e de todas as diferentes perspectivas do mundo e da vida, a falarem todas com voz própria pela primeira vez na história da Humanidade, num contexto de ordem mundial gravemente perturbada.
A desordem, que em muitos aspectos ultrapassa a capacidade de intervenção das soberanias, excedidas pela globalização das interdependências, muitas delas portadoras de rupturas profundas com os modelos de acção que inspiraram a criação dos Estados soberanos, desenhou aberturas para a visibilidade das sociedades civis, e até para a percepção da sociedade civil mundial que habita a casa comum que é a terra.
Não é de estranhar, mas é extremamente preocupante, que o desenvolvimento deste tecido mundial de interdependências tenha acentuadamente provocado uma crise dessa invenção humana que é o Estado soberano. É também grave que a debilidade das lideranças do poder político, que marca a época de acelerada mudança em que vivemos, seja porventura um dos mais inquietantes sinais de falta de equação entre os desafios que enfrentamos e as capacidades das instituições de que temos experiência no plano da governança mundial.
Por isso, para além da crise de capacidade dos componentes da rede dos poderes políticos, para além da frequente quebra de credibilidade dos líderes das soberanias ainda definidas como mais responsáveis, para além dos efeitos colaterais aleatórios nos povos vítimas dos abusos de unilateralismos mal geridos, as sociedades civis alimentam a confiança na direcção de autoridades que excedem as áreas de influência das soberanias em crise de poder e de projecto, que tem o sentido das solidariedades transfronteiriças e transnacionais, que se orientam pela igual dignidade dos homens, entre mais razões porque cada homem é um fenómeno que não se repete na história da Humanidade.
Na dramática passagem do século XX para o século XXI, com duas guerras mundiais, com as guerras marginais do período de cinquenta anos de guerra fria, com os dramas da descolonização, com os crimes de guerra, com os crimes contra a humanidade, com os genocídios, foram homens como Gandhi, como Luther King, como Mandela, que se elevaram acima da tormenta, para manter viva a esperança, para avigorar as vontades de não desistir, para demonstrar que onde falha o poder não é necessariamente a ocasião de também falhar a autoridade, o carisma, o poder dos que não tem poder, isto para usar a bela expressão de Vaclav Havel, o inspirador das vinte mil palavras que o soberano invasor da sua Pátria não só não pôde prender, como não foi capaz de evitar os efeitos libertadores que tiveram na queda do regime soviético do leste europeu.
Neste domínio da esperança que habita a sociedade civil para além de todos os desastres da ordem política, além de termos o benefício da intervenção de líderes excepcionais que obedecem àqueles valores que Cícero entendia que um Deus legislador gravou no coração dos homens, e quem lhes obedece é honrado, e quem os viola é réprobo, temos aquela outra realidade que são as instituições, fiéis a uma ideia fundadora, e a um fundador, que passam de mão em mão o sonho, o projecto e a decisão, que podem episodicamente ter de recolher-se às catacumbas para salvaguardar-se do holocausto programado, mas que não calam a voz, e regressam ao combate diurno logo que a tenacidade é recompensada com a abertura de um novo caminho, ainda que estreito.
A Igreja Católica tem vasta experiência desse projecto atormentado, mas sempre com a defesa do conceito de que o povo de Deus não tem fronteiras, e que no povo de Deus não há estrangeiros.
Trata-se de um conceito que inspira a compreensão da realidade actual da sociedade civil mundial, que tende para transnacional e transfronteiriça, um facto que já inspira a autonomia dos estudos sobre o chamado terceiro sector ou nonpropit sector da economia, com o apoio de instituições como a Calouste Gulbenkian Foundation, a Luso-American Foundation, a Ilídio Pinho Foundation, a Aga Khan Foundation, e com relevo para o Center for Civil Society Studies of Johns Hopkins University nos EUA.
Acontece que o ilustre homenageado de hoje, Sua Alteza Aga Khan, recebeu a responsabilidade hereditária de uma liderança espiritual que radica directamente no Profeta, sendo o Iman of the Shia Ismaili Muslims. Falaremos adiante desta responsabilidade carismática, mas antes notaremos que faz parte da sua experiência histórica e da liderança que lhe pertence, o saber acumulado sobre as culturas ocidentais e orientais, sobre as dificuldades dos seus contactos, sobre os métodos mais apropriados para o seu encontro pacífico, cooperante, e produtivo de novas sínteses culturais. Foi essa a grande lição de Aga Khan III (1877-1957), cuja liderança no fim do Império britânico da Índia, e intervenção na Sociedade das Nações em 1930, assim como as intervenções reformistas na área dos direitos humanos, na insistente defesa da educação multicultural, e da amizade entre os povos, o fizeram inscrever na teoria de servidores dos interesses comuns da Humanidade. Não apenas ele próprio talhou por si um lugar único na história do moderno Islão, como a instituição encontrou, no Príncipe a quem Évora hoje presta homenagem, um líder que assegurou os valores que dão sentido à sua liderança espiritual, e fortalecem a linha de serviço à sociedade civil que se mundializa.
Ainda tive ocasião de apreciar, em cargo de responsabilidade, a notável acção que os ismaelitas desenvolvem em Moçambique, onde pude seguir a viagem que ali fez, oficialmente, o pai do nosso ilustre homenageado. Este laço com Portugal fortalece-se com a contribuição que a comunidade ismaelita dá hoje à sociedade civil portuguesa, que a acolhe com respeito, confiança e igualdade, uma sociedade que torna promissor o programa de cooperação que Sua Alteza assinou há poucos dias com o governo português, sem esquecer a devoção que com ele mantemos solidariamente com Moçambique, o povo que mais nos lembra nesta oportunidade.
Mas voltemos à liderança espiritual de Sua Alteza, uma das razões que inspiram a decisão da Universidade de Évora. Aqui, nesta Universidade, teve Portugal uma escola de Direito Natural, inspirada pelo seu professor Luís de Molina, escola de onde saiu o primeiro Bispo do Japão, escola que viveu todas as contradições, angústias, e combates da época que foi de Vitória, do Doctor Eximius Suarez, mestre de Coimbra, de Las Casas mergulhado na tragédia do encontro hispânico com a América.
Esta parte do património da Universidade, sedeada numa região onde persiste a marca da presença islâmica, e também a recordação dos Reis portugueses que em seu tempo realmente foram reis das três religiões, é uma sólida inspiração para que nos debrucemos com agonia, no sentido mais profundo da palavra, sobre os dramas de ruptura da paz que acompanham o facto que já referimos, e que não tem antecedente na história da Humanidade: todas as áreas culturais do mundo falam com voz própria. De facto, o multiculturalismo é uma realidade de dimensão crescente, e na Europa nesta data existe definitivamente um Islão europeu, como acontece em muitas outras áreas políticas e culturalmente diferenciadas que o receberam e integraram as suas comunidades, todas ligadas pela cidadania.
Os livros santos não sacralizam a guerra, a experiência de séculos demonstra que não existe nenhum problema que a guerra resolva, mas não obstante entramos no século XXI com o regresso à alarmante prática de incluir valores religiosos no conceito estratégico de poderes assimétricos que se afirmam como a longa mão de imperativos divinos.
A subida aos extremos, que era uma discutida prerrogativa dos Estados, emergiu com a forma de terrorismo global, que faz do martírio dos inocentes o instrumento do descrédito e violação da relação de confiança entre as sociedades civis e os governos.
Com algumas brutais e seleccionadas intervenções, esse terrorismo demonstrou a viciosa capacidade de recrutar desesperados no ambiente, tantas vezes injusto, discriminador, e sem esperança, de comunidades imigrantes, instaladas no próprio espaço ocidental, com isto afectando igualmente a relação de confiança sem a qual não se desenvolve o processo integrador.
A consciência da responsabilidade das lideranças espirituais, agindo na sociedade civil entendida como antes referimos, inspirou acções exigentes, em que não podemos deixar de referir, como inesquecível referência, a intervenção de João Paulo II. A sua histórica iniciativa de convocar para a cidade Santa de Assis os responsáveis de todas as crenças, para em conjunto meditarem sobre os valores comuns que as inspiram a favor da paz, tem neste acto a participante presença do Padre Mateus Zuppi, voz autorizado da Comunidade de Santo Egidyo, que prestou serviços extraordinários à paz em Moçambique, esse país tão presente no amor de portugueses, da Santa Sé, e de Sua Alteza Aga Khan.
Outras grandes vozes vieram dirigir-se ao mundo no nosso país, lembrando aqui a intervenção que, no ambiente de recepção da Universidade de Lisboa, se ficou a dever ao Dalai-Lama, ele também em pregação pela paz global, essa paz que não é apenas ausência de guerra.
A intervenção de Sua Alteza Aga Khan tem sido paradigmática na resposta a tão grave conjuntura. Por um lado, com a impressionante rede de Fundações, projectos de ajuda ao desenvolvimento sustentado pela área da geografia da fome, presença activa nas catástrofes com que a natureza anda a chamar os poderes políticos à humildade, orienta-se sem concessões pela defesa da dignidade humana, igual para todos sem distinção de etnias, culturas, ou religião, sabendo que a miséria física e espiritual desenvolve um caldo de cultura que facilita o recrutamento de desesperados para a violência sem medida. Por outro lado, dando consistência à intervenção de autoridades carismáticas na orientação da sociedade civil que se mundializa, a defesa dos valores da paz é uma cruzada em que se empenha sem concessões. De facto podem repetir-se, como referindo-se às suas convicções, as palavras que o seu ilustre antecessor Aga Khan III, na qualidade de Presidente da Assembleia da Sociedade das Nações, ali proferiu no discurso de posse no dia 13 de Setembro de 1937: “The peaceful removal of all causes of war and the establishment of the unchallengeable empire of peace throughout the world”.
A Universidade de Évora, segura do humanismo que nela tem raízes seculares, será honrada pelo facto de uma das escutadas vozes da sociedade civil mundial, dotada do carisma institucional que lhe pertence, e da autoridade pessoal que granjeou, sendo praticante da mesma regra, proclamada na ONU por Paulo VI, de que o desenvolvimento é o novo nome da paz, venha confirmar e reforçar nesta sede que a paz é um valor cimeiro da sua liderança espiritual, um valor cuja violação, como proclamou a UNESCO, começa no coração dos homens. Por estes fundamentos, solicito ao Magnifico Reitor da Universidade de Évora, que invista na dignidade de Doutor Honoris Causa Sua Alteza o Príncipe Aga Khan, um líder da paz.